a consciência em crise na narrativa de clarice lispector
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impressão que os seus iguais <strong>de</strong> classe estabeleciam acerca <strong>de</strong>la; a recíproca<br />
também era verda<strong>de</strong>ira. Vejase:<br />
[...] Não se l<strong>em</strong>brava quando fora a última vez que estava sozinha<br />
consigo mesma. Talvez nunca. S<strong>em</strong>pre era ela com outros, e<br />
nesses outros ela se refletia e os outros refletiamse nela. Nada era<br />
era puro, pensou s<strong>em</strong> se enten<strong>de</strong>r. Quando se viu no espelho a<br />
pele trigueira pelos banhos <strong>de</strong> sol faziam ressaltar as flores<br />
douradas perto do rosto nos cabelos negros , contevese para não<br />
exclamar um ‘ah!’ pois ela era cinqüenta milhões <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
gente linda. Nunca houve <strong>em</strong> todo o passado do mundo alguém<br />
que fosse como ela. E <strong>de</strong>pois, <strong>em</strong> três trilhões <strong>de</strong> trilhões <strong>de</strong> ano <br />
não haveria uma moça como ela.<br />
‘Eu sou uma chama acesa! E rebrilho e rebrilho toda essa<br />
escuridão!’ (LISPECTOR:1979, 133134).<br />
A ce<strong>na</strong> <strong>em</strong> muito l<strong>em</strong>bra uma das várias falas da perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong> G.H.,<br />
igualmente, refém e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, vítima do olhar do idêntico, do olhar que não<br />
reconhece a alterida<strong>de</strong>, o que pressupõe uma obtusa opção pela heg<strong>em</strong>onia. Assim,<br />
“A compreensão mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong> <strong>de</strong> indivíduo resulta mais da atomização da massa pelas<br />
técnicas <strong>de</strong> controle: o indivíduo que se constitui aí é o número do documento <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, <strong>na</strong> ord<strong>em</strong> do mesmo” (MURICY: 1998, 203).<br />
Situandonos <strong>de</strong> forma um tanto abreviada no entrecho da <strong>na</strong>rrativa,<br />
observarseá que, entre o espaço <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>corrido para o horário combi<strong>na</strong>do<br />
com o chofer particular, “seu” José, o qual a levaria <strong>de</strong> volta para casa, após cumprir<br />
sua seção <strong>de</strong> <strong>em</strong>belezamento num salão do elegante Copa Caba<strong>na</strong> Palace, Carla<br />
<strong>de</strong> Sousa e Santos, esposa <strong>de</strong> um conceituado banqueiro, resolve gastar o t<strong>em</strong>po<br />
ocioso até a chegada do motorista, conce<strong>de</strong>ndose o direito <strong>de</strong> andar livr<strong>em</strong>ente<br />
pelas ruas do famoso bairro <strong>de</strong>liciandose com a brisa que soprava <strong>na</strong>quela<br />
inebriante tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> maio. Daí <strong>em</strong> diante, o <strong>na</strong>rrador segue <strong>de</strong>sfiando o perfil da<br />
perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong>, ajustandoo ao privilegiadíssimo estatuto daqueles que são<br />
consi<strong>de</strong>rados po<strong>de</strong>rosos porque assim a condição fi<strong>na</strong>nceira <strong>de</strong> que <strong>de</strong>sfrutam lhes<br />
permite. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, a leitura <strong>de</strong>sse discurso é perpassada por uma dicção<br />
entr<strong>em</strong>eada <strong>de</strong> tons arrogantes, o que no fundo <strong>de</strong>nuncia uma elocução típica da<br />
posição <strong>de</strong> classe a que pertence a perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong>. E mais: o lócus <strong>de</strong> enunciação do<br />
<strong>na</strong>rrador acentua a não per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista a engre<strong>na</strong>g<strong>em</strong> do po<strong>de</strong>roso mundo<br />
capitalista que, s<strong>em</strong>elhante a uma máqui<strong>na</strong>, não esgota sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produzir<br />
dinheiro:<br />
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