a consciência em crise na narrativa de clarice lispector
a consciência em crise na narrativa de clarice lispector
a consciência em crise na narrativa de clarice lispector
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
possibilida<strong>de</strong>. A<strong>na</strong>lisada sob esse aspecto, a elocução da perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong><strong>na</strong>rradora<br />
representa o processo <strong>de</strong> compreensão e questio<strong>na</strong>mento <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> pensar<br />
calcada no conservadorismo <strong>de</strong> uma prática entranhada <strong>na</strong> socieda<strong>de</strong> burguesa. No<br />
âmbito da <strong>na</strong>rrativa, po<strong>de</strong>rseia dizer que esse dado está implícito no amplo<br />
espectro que compõe a discursivida<strong>de</strong> <strong>clarice</strong>a<strong>na</strong>.<br />
Nesse sentido, autoreconhecendose no outro, ela passa a perceber no<br />
diferente o seu igual <strong>de</strong> classe. Desse modo, o monólogo interior da perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong><br />
transformase <strong>em</strong> autoreflexão <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> pensamento conservadora, a qual,<br />
por ser alie<strong>na</strong>da, ela assimilara irrefletidamente. Questio<strong>na</strong>ndoos s<strong>em</strong> excluílos, a<br />
protagonista apreen<strong>de</strong> sua vertente supostamente negativa. Isso me leva a perceber<br />
o discurso da perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong> como a releitura do discurso metafísico. Vejase esta<br />
sequência:<br />
[...] Terei enfim perdido todo um sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> bomgosto? Mas será<br />
este o meu ganho único? Quanto eu <strong>de</strong>via ter vivido presa para<br />
sentirme agora mais livre somente por não recear mais a falta <strong>de</strong><br />
estética... Ainda não pressinto o que mais terei ganho. Aos poucos,<br />
qu<strong>em</strong> sabe, irei percebendo. Por enquanto o primeiro prazer tímido<br />
que estou tendo é o <strong>de</strong> constatar que perdi o medo do feio. E esta<br />
perda é <strong>de</strong> uma tal bonda<strong>de</strong>. E uma doçura (LISPECTOR: 1998, 20<br />
21).<br />
Aliás, o discurso da perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong> faz ressoar, <strong>de</strong> forma indireta, o comodismo b<strong>em</strong><br />
típico da classe domi<strong>na</strong>nte <strong>em</strong> <strong>de</strong>ixar insolúveis as questões que estariam a exigir<br />
uma tomada <strong>de</strong> posição pela via do confronto. Por isso, para G.H., é mais cômodo<br />
permanecer <strong>na</strong> alie<strong>na</strong>ção. Vejase:<br />
(De uma coisa eu sei: se chegar ao fim <strong>de</strong>ste relato, irei, não<br />
amanhã, mas hoje mesmo, comer e dançar no ‘TopBambino’,<br />
estou precisando da<strong>na</strong>damente me divertir e me divergir. Usarei,<br />
sim, o vestido azul novo, que me <strong>em</strong>agrece um pouco e me dá<br />
cores, telefo<strong>na</strong>rei para Carlos, Josefi<strong>na</strong>, Antônio, não me l<strong>em</strong>bro<br />
b<strong>em</strong> <strong>em</strong> qual dos dois percebi que me queria ou ambos me<br />
queriam, comerei ‘crevettes ao não importa o quê’, e sei porque<br />
comerei crevettes, hoje <strong>de</strong> noite, hoje <strong>de</strong> noite vai ser a minha vida<br />
diária retomada, a <strong>de</strong> minha alegria comum, precisarei para o<br />
resto <strong>de</strong> meus dias <strong>de</strong> minha leve vulgarida<strong>de</strong> doce e b<strong>em</strong><br />
humorada, preciso esquecer, como todo o mundo.)<br />
É que não contei tudo (LISPECTOR: 1998, 162).<br />
38