Os Sertões - Euclides da Cunha - Mkmouse.com.br

com a mesma forma, dava aos lutadores exaustos a impressão indefinível de<br />
uma imobilidade no tempo.<br />
À tarde ou durante o dia, nos raros momentos em que se atreguavam os<br />
assaltos, alguns se distraíam contemplando o arraial intangível. Lá se iam,<br />
então, cautelosamente, desenfiando-se pelo viés das encostas, alongando as<br />
distâncias, para atingirem com resguardos um ponto abrigado qualquer de<br />
onde o distinguissem a salvo. Perturbavam-se-lhes, então, as vistas, no<br />
emaranhado dos casebres, esbatidos embaixo. E contavam: 1, 2, 3, 4 mil, 5 mil<br />
casas ! Cinco mil casas ou mais ! Seis mil casas, talvez! Quinze ou 20 mil<br />
almas - encafurnadas naquela tapera babilônica... E invisíveis. De longe em<br />
longe, um vulto, rápido, cortava uma viela estreita, correndo, ou apontava, por<br />
um segundo, indistinto e fugitivo, à entrada da grande praça vazia,<br />
desaparecendo logo. Nada mais. Em torno o debuxo misterioso de uma<br />
paisagem bíblica: a infinita tristura das colinas desnudas, ermas, sem árvores.<br />
Um rio sem águas, tornejando-as, feito uma estrada poenta e longa, mais<br />
longe, avassalando os quadrantes, a corda ondulante das serras igualmente<br />
desertas, rebatidas, nitidamente, na imprimadura do horizonte claro, feito o<br />
quadro desmedido daquele cenário estranho.<br />
Era uma evocação. Como se a terra se ataviasse em dados trechos para<br />
idênticos dramas, tinha-se, ali, o que quer que era recordando um recanto da<br />
Iduméia, na paragem lendária que perlonga as ribas meridionais do Asfaltite,<br />
esterilizada para todo o sempre pelo malsinar fatídico dos profetas e pelo<br />
reverberar adusto dos plainos do Iemen...<br />
O arraial - "compacto" como as cidades do Evangelho - completava a<br />
ilusão.<br />
Ao cair da noite, de lá ascendia, ressoando longamente nos descampados<br />
em ondulações sonoras, que vagarosamente se alargavam pela quietude dos<br />
ermos e se extinguiam em ecos indistintos, refluindo nas montanhas<br />
longínquas, o toque da Ave-Maria...<br />
Os canhões da Favela bramiam, despertos por aquelas vozes tranqüilas.<br />
Cruzavam-se sobre o campanário humilde as trajetórias das granadas.<br />
Estouravam-lhe por cima e em roda os schrapnels. Mas lento e lento,<br />
intervaladas de meio minuto, as vozes suavíssimas se espalhavam silentes,<br />
sobre a assonância do ataque. O sineiro impassível não claudicava um<br />
segundo no intervalo consagrado. Não perdia uma nota.<br />
Cumprida, porém, a missão religiosa, apenas extintos os ecos da última<br />
badalada, o mesmo sino dobrava estridulamente sacudindo as vibrações do<br />
alarma. Corria um listrão de flamas pelas cimalhas das igrejas. Caía feito um<br />
rastilho no arraial. Alastrava-se pela praça deflagrando para as faldas do morro;<br />
abrangia-as; e uma réplica violenta caía estrepitosamente sobre a tropa. Fazia<br />
calar o bombardeio. O silencio descia amortecedoramente sobre os dois<br />
campos. Os soldados escutavam, então, misteriosa e vaga, coada pelas<br />
paredes espessas do templo meio em ruínas, a cadência melancólica das<br />
rezas . . .<br />
Desânimo