Os Sertões - Euclides da Cunha - Mkmouse.com.br
Os Sertões - Euclides da Cunha - Mkmouse.com.br
Os Sertões - Euclides da Cunha - Mkmouse.com.br
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
desvia<strong>da</strong> a mira, ou pouco eficaz o chumbo, a onça, "vindo em cima <strong>da</strong><<strong>br</strong> />
fumaça", é invencível.<<strong>br</strong> />
O pugilato é mais <strong>com</strong>ovente. O atleta enfraquecido, tendo à mão esquer<strong>da</strong><<strong>br</strong> />
a forquilha e à direita a faca, irrita e desafia a fera, provoca-lhe o bote e apara-a<<strong>br</strong> />
no ar, trespassando-a de um golpe.<<strong>br</strong> />
Nem sempre, porém, pode aventurar-se à façanha arrisca<strong>da</strong>. Uma moléstia<<strong>br</strong> />
extravagante <strong>com</strong>pleta a sua desdita - a hemeralopia. Esta falsa cegueira é<<strong>br</strong> />
paradoxalmente feita pelas reações <strong>da</strong> luz; nasce dos dias claros e quentes,<<strong>br</strong> />
dos firmamentos fulgurantes, do vivo ondular dos ares em fogo so<strong>br</strong>e a terra<<strong>br</strong> />
nua. É uma pletora do olhar. Mas o Sol se esconde no poente a vítima na<strong>da</strong><<strong>br</strong> />
mais vê. Está cega. A noite afoga-se de súbito, antes de envolver a Terra. E na<<strong>br</strong> />
manhã seguinte a vista extinta lhe revive, acendendo-se no primeiro lampejo do<<strong>br</strong> />
levante, para se apagar, de novo, à tarde, <strong>com</strong> intermitência dolorosa.<<strong>br</strong> />
Renasce-lhe <strong>com</strong> ela a energia. Ain<strong>da</strong> se não considera vencido. Restamlhe,<<strong>br</strong> />
para desalterar e sustentar os filhos, os talos tenros, os mangarás <strong>da</strong>s<<strong>br</strong> />
<strong>br</strong>omélias selvagens. Ilude-os <strong>com</strong> essas iguarias bárbaras.<<strong>br</strong> />
Segue, a pé agora, porque se Ihe parte o coração só de olhar para o<<strong>br</strong> />
cavalo, para os logradouros. Contempla ali a ruína <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong>: bois espectrais,<<strong>br</strong> />
vivos não se sabe <strong>com</strong>o, caídos sob as árvores mortas, mal soerguendo o<<strong>br</strong> />
arcabouço murcho so<strong>br</strong>e as pernas secas, marchando vagarosamente,<<strong>br</strong> />
cambaleantes; bois mortos há dias e intactos, que os próprios urubus rejeitam,<<strong>br</strong> />
porque não rompem a bica<strong>da</strong>s as suas peles esturra<strong>da</strong>s; bois jururus, em ro<strong>da</strong><<strong>br</strong> />
<strong>da</strong> clareira de chão entorroado onde foi a agua<strong>da</strong> predileta; e, o que mais Ihe<<strong>br</strong> />
dói, os que ain<strong>da</strong> não de todo exaustos o procuram, e o circun<strong>da</strong>m, confiantes,<<strong>br</strong> />
urrando em longo apelo triste que parece um choro.<<strong>br</strong> />
E nem um cereus avulta mais em torno; foram rumina<strong>da</strong>s as últimas ramas<<strong>br</strong> />
verdes dos juás...<<strong>br</strong> />
Trançam-se, porém, ao lado, impenetráveis renques de macambiras. É<<strong>br</strong> />
ain<strong>da</strong> um recurso. Incendeia-os, batendo o isqueiro nas acen<strong>da</strong>lhas <strong>da</strong>s folhas<<strong>br</strong> />
ressequi<strong>da</strong>s para os despir, em <strong>com</strong>bustão rápi<strong>da</strong>, dos espinhos. E quando os<<strong>br</strong> />
rolos de fumo se enovelam e se diluem no ar puríssimo, vêem-se, correndo de<<strong>br</strong> />
todos os lados, em tropel moroso de estropeados, os magros bois famintos, em<<strong>br</strong> />
busca do último repasto.<<strong>br</strong> />
Por fim tudo se esgota e a situação não mu<strong>da</strong>. Não há probabili<strong>da</strong>de<<strong>br</strong> />
sequer de chuvas. A casca <strong>da</strong>s marizeiras não transu<strong>da</strong>, prenunciando-as. O<<strong>br</strong> />
nordeste persiste intenso, rolando, pelas chapa<strong>da</strong>s, zunindo em prolongações<<strong>br</strong> />
uiva<strong>da</strong>s na galha<strong>da</strong> estrepitante <strong>da</strong>s caatingas e o Sol alastra, reverberando no<<strong>br</strong> />
firmamento claro, os incêndios inextinguíveis <strong>da</strong> canícula. O sertanejo,<<strong>br</strong> />
assoberbado de reveses, do<strong>br</strong>a-se afinal.<<strong>br</strong> />
Passa certo dia, a sua porta, a primeira turma de "retirantes". Vê-a,<<strong>br</strong> />
assom<strong>br</strong>ado, atravessar o terreiro, miseran<strong>da</strong>, desaparecendo adiante numa<<strong>br</strong> />
nuvem de poeira, na curva do caminho... No outro dia, outra. E outras. É o<<strong>br</strong> />
sertão que se esvazia.