Os Sertões - Euclides da Cunha - Mkmouse.com.br

o "bandido famigerado'' da literatura marcial das ordens do dia. O sertanejo<br />
defendia o lar invadido, nada mais. Enquanto os que lho ameaçavam<br />
permaneciam distantes, rodeava-os de ciladas que lhes tolhessem o passo.<br />
Mas, quando eles, ao cabo, lhe bateram às portas e lhas arrombaram a coices<br />
de armas, aventou-se-lhe, como único expediente, a resistência a pé firme,<br />
afrontando-os face a face, adstrito à preocupação digna da defesa e ao nobre<br />
compromisso da desforra. Canudos só seria conquistado casa por casa. Toda a<br />
expedição iria despender três meses para a travessia de cem metros, que a<br />
separavam da apside da igreja nova. E no último dia de sua resistência<br />
inconcebível, como bem poucas idênticas na história, os seus últimos<br />
defensores, três ou quatro anônimos, três ou quatro magros titãs famintos e<br />
andrajosos, iriam queimar os últimos cartuchos em cima de 6 mil homens!<br />
Aquela pertinácia formidável começou no dia 18 e não fraqueou mais.<br />
Terminara o ataque mas a batalha continuou, interminável, monótona,<br />
aterradora, com a mesma intercadência espelhada na Favela: difundida em<br />
tiros que sulcavam o espaço de minuto a minuto, ou tiroteios alastrando-se<br />
furiosamente por todas as linhas, em arrancos súbitos, repentinos combates de<br />
quartos de hora, prestes travados, prestes desfeitos, antes que terminassem as<br />
notas emocionantes dos alarmas. Esses assaltos subitâneos, intermeados de<br />
longas horas de repouso relativo, traduziam sempre uma inversão de papéis.<br />
Os assaltantes eram, por via de regra, os assaltados. O inimigo encantoado é<br />
quem lhes marcava o momento angustioso das refregas, e estas surgiam<br />
sempre de chofre.<br />
Noite velha, às vezes quebrando um armistício de minutos, que os<br />
soldados da vanguarda aproveitavam para descanso ilusório, cabeceando<br />
abraçados às carabinas, um foguetão ascendia rechiando asperamente, feito<br />
um rasgão no firmamento escuro. E à sua luz fugaz viam-se as cimalhas das<br />
igrejas debruadas de uma orla negra e fervilhante. O combate feria-se na treva,<br />
aos fulgores intermitentes das fuzilarias.<br />
Outras vezes, contra o que era de esperar, era ao romper do dia, em plena<br />
manhã esplendorosa e ardente, que os jagunços acometiam<br />
desassombradamente, às claras.<br />
Notas de um diário<br />
Um diário minucioso da luta naqueles primeiros dias, lhe patenteia o caráter<br />
anormalmente bárbaro. Esbocemo-lo em traços largos até ao dia 24 de julho,<br />
apenas para definir uma situação que daquela data em diante não se<br />
transmudou.<br />
Dia 19 - A fuzilaria inimiga principia às cinco horas da manhã. Prossegue<br />
durante o dia. Entra pela noite dentro. O comandante da 1.ª coluna, para<br />
revigorar a repulsa, determina a vinda de mais dois canhões Krupps, que<br />
estavam na retaguarda, a fim de serem assestados à noite. Às doze e meia foi<br />
ferido, em seu acampamento, dentro de um casebre onde descansava, numa<br />
rede, o comandante da 7.ª Brigada. Às duas horas da tarde, depois de apontar<br />
e disparar o canhão da direita para uma das torres da igreja nova, morre<br />
trespassado por uma bala o tenente Tomás Braga. À tarde descem com<br />
dificuldade da Favela algumas reses para alimento da tropa. A boiada dispersa-