Os Sertões - Euclides da Cunha - Mkmouse.com.br

O homem dos sertões - pelo que esboçamos - mais do que qualquer outro,<br />
está em função imediata da terra. É uma variável dependente no jogar dos<br />
elementos. Da consciência da fraqueza para os debelar resulta, mais forte, este<br />
apelar constante para o maravilhoso, esta condição inferior de pupilo estúpido<br />
da divindade. Em paragens mais benéficas a necessidade de uma tutela<br />
sobrenatural não seria tão imperiosa. Ali, porém, as tendências pessoais como<br />
que se acolchetam às vicissitudes externas, e deste entrelaçamento resulta,<br />
copiando o contraste que observamos entre a exaltação impulsiva e a apatia<br />
enervadora da atividade, a indiferença fatalista pelo futuro e a exaltação<br />
religiosa. Os ensinamentos dos missionários não poderiam exercitar-se<br />
estremes das tendências gerais da sua época. Por isto, como um palimpsesto,<br />
a consciência imperfeita dos matutos revela nas quadras agitadas, rompendo<br />
dentre os ideais belíssimos do catolicismo incompreendido, todos os estigmas<br />
de estádio inferior.<br />
É que, mesmo em períodos normais, a sua religião é indefinida e vária. Da<br />
mesma forma que os negros Haúças, adaptando à liturgia todo o ritual<br />
iorubano, realizam o fato anômalo, mas vulgar mesmo na capital da Bahia, de<br />
seguirem para as solenidades da Igreja por ordem dos fetiches, os sertanejos,<br />
herdeiros infelizes de vícios seculares, saem das missas consagradas para os<br />
ágapes selvagens dos candomblés africanos ou poracês do tupi. Não espanta<br />
que patenteiem, na religiosidade indefinida, antinomias surpreendentes.<br />
Quem vê a família sertaneja, ao cair da noite, ante o oratório tosco ou<br />
registro paupérrimo, à meia luz das candeias de azeite, orando pelas almas<br />
dos mortos queridos, ou procurando alentos à vida tormentosa, encanta-se.<br />
O culto dos mortos é impressionador. Nos lugares remotos, longe dos<br />
povoados, inumam-nos à beira das estradas, para que não fiquem de todo em<br />
abandono, para que os rodeiem sempre as preces dos viandantes, para que<br />
nos ângulos da cruz deponham estes, sempre, uma flor, um ramo, uma<br />
recordação fugaz mas renovada sempre. E o vaqueiro, que segue<br />
arrebatadamente, estaca, prestes, o cavalo, ante o humilde monumento - uma<br />
cruz sobre pedras arrumadas - e, a cabeça descoberta, passa vagaroso,<br />
rezando pela salvação de quem ele nunca viu talvez, talvez de um inimigo.<br />
A terra é o exílio insuportável, o morto um bem-aventurado sempre.<br />
O falecimento de uma criança é um dia de festa. Ressoam as violas na<br />
cabana dos pobres pais, jubilosos entre as lágrimas; referve o samba<br />
turbulento; vibram nos ares, fortes, as coplas dos desafios; enquanto, a uma<br />
banda, entre duas velas de carnaúba, coroado de flores, o anjinho exposto<br />
espelha, no último sorriso paralisado, a felicidade suprema da volta para os<br />
céus, para a felicidade eterna - que é a preocupação dominadora daquelas<br />
almas ingênuas e primitivas.<br />
No entanto há traços repulsivos no quadro desta religiosidade de aspectos<br />
tão interessantes, aberrações brutais, que a derrancam ou maculam.<br />
A "Pedra Bonita"<br />
As agitações sertanejas, do Maranhão à Bahia, não tiveram ainda um