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Elogio da Loucura - CFH

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decerto que não é sincera nem durável. Todos eles são de humor volúvel e intratável, além<br />

de serem penetrantes demais: têm olhos de lince para descobrir os defeitos dos amigos, e de<br />

toupeira para ver os próprios. Portanto, como os homens estão sujeitos a muitas<br />

imperfeições (e podeis acrescentar a estas a diferença de i<strong>da</strong>de e de inclinações, os<br />

numerosos erros, passos em falso e vicissitudes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana), como poderia por um só<br />

instante subsistir entre esses Argos o laço <strong>da</strong> amizade, se a evithia, como a chamam os<br />

gregos, que em latim eqüivale a estupidez ou conivência, não o reforçasse? Servi-vos do<br />

amor para julgar <strong>da</strong> amizade, que é mais ou menos a mesma coisa. Não traz Cupido, esse<br />

autor, esse pai de to<strong>da</strong> ternura, uma ven<strong>da</strong> nos olhos, que lhe faz confundir o belo com o<br />

feio? Não é ele, porventura, que faz ca<strong>da</strong> um achar belo o que é seu, de forma que o velho é<br />

tão apaixonado por sua velha quanto o jovem por sua donzela? Essas coisas se verificam<br />

em to<strong>da</strong> parte, mas em to<strong>da</strong> parte são motivo de riso. Pois são justamente essas coisas<br />

ridículas que formam o principal laço <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e que, mais do que tudo, contribuem<br />

para a alegria <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

O que dissemos <strong>da</strong> amizade também pensamos e com mais razão dizemos do<br />

matrimônio. Trata-se (como deveis estar fartos de saber) de um laço que só pode ser<br />

dissolvido pela morte. Deuses eternos! Quantos divórcios não se verificariam, ou coisas<br />

ain<strong>da</strong> piores do que o divórcio, se a união do homem com a mulher não se apoiasse, não<br />

fosse alimenta<strong>da</strong> pela adulacão, pelas carícias, pela complacência, pela volúpia, pela<br />

simulação, em suma, por to<strong>da</strong>s as minhas sequazes e auxiliares? Ah! como seriam poucos<br />

os matrimônios, se o noivo prudentemente investigasse a vi<strong>da</strong> e os segredos de sua futura<br />

cara metade, que lhe parece o retrato <strong>da</strong> discrição, <strong>da</strong> pudicícia e <strong>da</strong> simplici<strong>da</strong>de! Ain<strong>da</strong><br />

menos numerosos seriam os matrimônios duráveis, se os maridos, por interesse, por<br />

complacência ou por burrice, não ignorassem a vi<strong>da</strong> secreta de suas esposas. Costuma-se<br />

achar isso uma loucura, e com razão; mas é justamente essa loucura que torna o esposo<br />

querido <strong>da</strong> mulher, e a mulher do esposo, mantendo a paz doméstica e a uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> família.<br />

Corneia-se um marido? To<strong>da</strong> a gente ri e o chama de corno, enquanto o bom homem, todo<br />

atencioso, fica a consolar a cara-metade, e a enxugar com seus ternos beijos as lágrimas<br />

fingi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> mulher adúltera. Pois não é melhor ser enganado dessa forma do que roer-se de<br />

bílis, fazer barulho, pôr tudo de pernas para o ar, ficar furioso, abandonando-se a um ciúme<br />

funesto e inútil? Afinal de contas, nenhuma socie<strong>da</strong>de, nenhuma união grata e durável<br />

poderia existir na vi<strong>da</strong>, sem a minha intervenção: o povo não suportaria por muito tempo o<br />

príncipe, nem o patrão o servo, nem a patroa a cria<strong>da</strong>, nem o professor o aluno, nem o<br />

amigo o amigo, nem o marido a mulher, nem o hospedeiro o hóspede, nem o senhorio o<br />

inquilino, etc., se não se enganassem reciprocamente, não se adulassem, não fossem<br />

prudentemente cúmplices, temperando tudo com um grãozinho de loucura. Não duvido que<br />

tudo o que até agora vos disse vos tenha parecido <strong>da</strong> máxima importância. E de que duvi<strong>da</strong><br />

a <strong>Loucura</strong>? Mas, muitas outras coisas deveis ain<strong>da</strong> escutar de mim. Redrobrai, pois, vossa<br />

gentil atenção.<br />

Dizei-me por obséquio: um homem que odeia a si mesmo poderá, acaso, amar alguém?<br />

Um homem que discor<strong>da</strong> de si mesmo poderá, acaso, concor<strong>da</strong>r com outro? Será capaz de<br />

inspirar alegria aos outros quem tem em si mesmo a aflição e o tédio? Só um louco, mais<br />

louco ain<strong>da</strong> do que a própria <strong>Loucura</strong>, admitireis que possa sustentar a afirmativa de tal<br />

opinião. Ora, se me excluirdes <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, não só o homem se tornará intolerável ao<br />

homem, como também, to<strong>da</strong> vez que olhar para dentro de si, não poderá deixar de<br />

experimentar o desgosto de ser o que é, de se achar aos próprios olhos imundo e disforme,<br />

e, por conseguinte, de odiar a si mesmo. A natureza, que em muitas coisas é mais madrasta

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