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Que a loucura é realmente superior em digni<strong>da</strong>de à sabedoria prova-o, à evidência, o<br />
autor do Eclesiastes, seja ele quem for, no capitulo XLIV. Mas, meus caros ouvintes, antes<br />
de citar essa passagem, quero fazer um pacto convosco: juro-vos por Hércules que nunca<br />
mais vos falarei disso, se não responderdes favoravelmente às minhas perguntas, a exemplo<br />
<strong>da</strong>queles que, segundo Platão, discutiam com Sócrates. Dou, pois, início à minha indução.<br />
Dizei-me, por favor, o que será melhor ocultar: as coisas raras e preciosas, ou as vis e<br />
triviais. Como, não respondeis? Porque permaneceis imóveis como se não passásseis de<br />
estátuas? Mas, não será o vosso silêncio que me fechará a boca. Os gregos responderão por<br />
vós e dirão que a bilha se deixa sem receio à porta, ao passo que as coisas preciosas se<br />
conservam escondi<strong>da</strong>s. Receando, porém, que profaneis essa sentença, rejeitando-a, acho<br />
conveniente advertir-vos que é de Aristóteles, o deus dos nossos mestres. Continuemos:<br />
haverá aqui alguém bastante louco que, de bom grado, seja capaz de abandonar na rua o seu<br />
dinheiro e as suas jóias? Não o creio, naturalmente! Todos vós, ao contrário, me pareceis,<br />
se não me engano, desses homens que costumam ocultar muito bem tudo o que possuem de<br />
precioso e que só se descui<strong>da</strong>m <strong>da</strong>s coisas que pouco ou na<strong>da</strong> importa perder. Assim, pois,<br />
exigindo a prudência que se escon<strong>da</strong>m as coisas de valor e que não se deixem expostas<br />
senão as coisas de pouca valia, a minha causa venceu, triunfou! O Eclesiastes ordena que se<br />
manifeste a sabedoria e se oculte a loucura. Textualmente: O homem que esconde a própria<br />
loucura é melhor que o que esconde a própria sabedoria. Mas, isso não basta. As sagra<strong>da</strong>s<br />
escrituras atribuem ain<strong>da</strong> ao louco a candura de ânimo, <strong>da</strong> qual não é suscetível o sábio,<br />
embora se julgue sempre melhor do que os outros. É, pelo menos, como interpreto a<br />
seguinte passagem do Eclesiastes, capítulo X: Ao passear, o louco supõe que todos os que<br />
encontra sejam loucos como ele. Quem pode deixar de admirar essa candura e essa<br />
sinceri<strong>da</strong>de? Naturalmente, todos os homens fazem um alto conceito de si mesmos, mas a<br />
loucura torna o homem tão humilde que procura dividir a sua virtude com todos os outros<br />
homens e comunicar-lhes a glória do seu mérito. Salomão julgava ter chegado a tanta<br />
perfeição, dizendo no capítulo XXX: Eu sou o mais louco de todos os homens. São Paulo,<br />
esse evangelista, esse apóstolo <strong>da</strong>s gentes, não passou sem atribuir-se o meu nome, pois<br />
disse aos coríntios: Como louco, eu afirmo que sou o maior de todos (de tal maneira<br />
considerava ele vergonhoso ser superado em loucura). Mas, enquanto isso, insurgem-se<br />
contra mim certos teólogos grecistas, impingindo como novi<strong>da</strong>des coisas rançosas e antigas<br />
e se esforçando por cegar o vulgo com anotações que, além do mais, são pensamentos<br />
roubados aqui e ali: entre eles, encontra-se, se não em primeiro, pelo menos em segundo<br />
lugar o meu caro Erasmo, que freqüentemente cito para lhe prestar uma homenagem (98).<br />
— Oh <strong>Loucura</strong>! — exclamam eles, — tu te mostras ver<strong>da</strong>deiramente digna do teu nome,<br />
tanto em tuas interpretações como em tudo mais! O pensamento do apóstolo é bem diverso<br />
<strong>da</strong>quele que tu sonhas: não há a intenção de persuadir que ele seja mais louco que os<br />
outros; depois de ter dito que eles são ministros de Cristo e eu também o sou, como se não<br />
bastasse igualar-se aos outros, acrescenta, corrigindo-se: E o sou mais do que eles,<br />
sentindo-se não somente igual aos outros apóstolos no ministério do evangelho, mas ain<strong>da</strong><br />
um tanto superior. Para evitar o escân<strong>da</strong>lo que semelhante declaração poderia provocar, São<br />
Paulo chama-se louco, pois só os loucos têm o direito de dizer tudo sem risco de ofender<br />
alguém. Mas, seja qual for a interpretação que se dê ao que escreveu São Paulo, deixo que o<br />
discuta quem quiser. Quanto a mim, prefiro ser ataca<strong>da</strong> pelos fogos desses grandes, desses<br />
enormes, desses gordos, desses célebres teologastros, com os quais a maior parte dos<br />
doutores prefere correr o risco de enganar-se a conhecer a ver<strong>da</strong>de oculta<strong>da</strong> por esses<br />
séquito de pessoas de três línguas (99), às quais se dá tanta importância como às gralhas.