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Elogio da Loucura - CFH

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Além disso, tenho em meu favor glorioso teólogo, que prudentemente julgo não dever<br />

nomear, pois sei muito bem que as nossas gralhas não deixariam de me citar a fábula do<br />

Asinus ad lyram (100). Esse doutor assim explica magistralmente, teologicamente, essa<br />

passagem: Eu o digo com menor sabedoria, eu o sou mais do que eles. Faz disso um novo<br />

capítulo — e assim é quem exige uma dialética consuma<strong>da</strong> — que vos acrescenta uma nova<br />

secção. Eis, não só quanto à forma, mas também quanto ao fundo, as palavras do meu<br />

teólogo: Eu o digo com menor sabedoria, isto é, se vos pareço louco quando me igualo aos<br />

falsos apóstolos, mais tolo vos parecerei ain<strong>da</strong> se quiser preferir-me a eles. Depois, como<br />

que divagando, passa de repente a outro assunto.<br />

Mas, como sou louca ao querer atormentar meu cérebro com a interpretação de um só<br />

teólogo! Pois não conquistaram os nossos teólogos o direito público de esticar o céu, isto é,<br />

as escrituras, como se fossem uma pele? Se devemos <strong>da</strong>r crédito ao douto São Jerônimo,<br />

que possuía cinco línguas, o próprio São Paulo usava do referido direito, encontrando-se<br />

em suas obras coisas que parecem opostas às sagra<strong>da</strong>s escrituras. Por essa pia fraude do<br />

apóstolo <strong>da</strong>s gentes, podemos julgar to<strong>da</strong>s as outras. Tendo São Paulo observado, certa vez,<br />

uma inscrição que os atenienses tinham posto sobre um altar, na qual se lia: Aos deuses <strong>da</strong><br />

Ásia, <strong>da</strong> Europa e <strong>da</strong> África, aos deuses ignotos e estranhos, — trancou a inscrição e,<br />

tomando somente a parte julga<strong>da</strong> vantajosa à religião cristã, suprimiu o resto. E até as<br />

palavras: ao deus ignoto, que formam o texto do seu discurso, bem se vê que não foram<br />

cita<strong>da</strong>s com fideli<strong>da</strong>de. Os teólogos modernos mostram ter aproveitado bastante esse<br />

exemplo, pois freqüentemente, <strong>da</strong> passagem de um autor costumam tirar cinco ou seis<br />

palavras e alterar-lhes o sentido, como lhes convém. E assim é que, ao se confrontar a cópia<br />

com o original, ou quando se compara a citação com o desenvolvimento do raciocínio, fica<br />

patenteado que o autor citado não teve a intenção de dizer o que se pretende, ou então disse<br />

justamente o contrário. Pois é o que fazem os nossos mestres, e o fazem com tão feliz<br />

impudência que os próprios legistas, que tanto se divertem em citar a torto e a direito, ficam<br />

com muita inveja deles.<br />

E como poderiam deixar de sair-se bem com essa astúcia os guerreiros espirituais? Tudo<br />

podem esperar depois do primeiro sucesso do grande teólogo de que há pouco vos falei.<br />

Oh! que bom! Estou com o nome na ponta <strong>da</strong> língua! Receio, porém, que me citem outra<br />

vez o provérbio grego do Asinus ad lyram.<br />

Esse doutor, no evangelho de São Lucas, interpretou tão bem uma passagem, que o seu<br />

senso, como o de Jesus Cristo, desperta como o fogo com a água. Julgai-o, pois. Por<br />

ocasião de um extremo perigo, ocasião em que os bons clientes mais assiduamente se<br />

acham em torno dos seus protetores, oferecendo-lhes todo os seus serviços, o Salvador,<br />

querendo tornar os seus discípulos superiores à esperança de qualquer socorro humano, fez<br />

aos mesmos a seguinte pergunta: — “Quando vos enviei pelo mundo, faltou-vos alguma<br />

coisa?” — Eles não tinham nem dinheiro para a viagem, nem sapatos para garantir-se<br />

contra as pedras e os espinhos, nem alforges a que pudessem recorrer em caso de fome.<br />

Como os apóstolos lhe respondessem que tinham sempre encontrado o necessário, o<br />

Salvador acrescentou: — “Agora, aquele de vós que tiver um saco, pequeno ou grande,<br />

deve deixá-lo; e aquele que não tiver espa<strong>da</strong>, ven<strong>da</strong> a túnica para comprá-la”. Como to<strong>da</strong> a<br />

doutrina evangélica aconselha a mansidão, a tolerância e o desprezo pela vi<strong>da</strong>, seria preciso<br />

ser cego para não perceber o sentido e a intenção de Cristo nessa passagem, O divino<br />

legislador queria preparar os seus convi<strong>da</strong>dos para o ministério do apostolado e, por isso,<br />

impunha-lhes que se destacassem de to<strong>da</strong>s as coisas desta terra. Não bastava largar os<br />

sapatos e os alforges. Eles deviam ain<strong>da</strong> despojar-se dos hábitos, o que significa, sem

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