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ao chão: isso, contudo, não impedia que estivesse sempre disposto a bater-se a socos,<br />
fiando-se na força dos escravos, como se esta fosse sua.<br />
É inútil passar aqui em revista os que professam as artes, porque com razão podem ser<br />
considerados os prediletos, os favoritos do meu amor próprio. Em geral, essas pessoas<br />
estão de tal forma fanatiza<strong>da</strong>s por seu pequeno mérito que prefeririam ceder uma parte do<br />
seu patrimônio a confessar-se ineptas. Os cômicos, os músicos, os oradores, os poetas —<br />
eis aí, eis os melhores amigos do amor próprio! Quanto mais ignorantes, tanto mais<br />
perfeitos se julgam em sua arte, e, assim prevenidos em benefício próprio, aproveitam to<strong>da</strong>s<br />
as ocasiões para celebrar os próprios louvores. Mas, não penseis que não encontrem quem<br />
os aplau<strong>da</strong>, pois to<strong>da</strong> tolice, por mais grosseira que seja, sempre encontra sequazes. Mas,<br />
ain<strong>da</strong> é pouco: quanto mais contrária ao bom senso é uma coisa, tanto maior é o número<br />
dos seus admiradores, e constantemente se vê que tudo o que mais se opõe à razão é<br />
justamente o que se adota com maior avidez. Perguntar-me-eis por que? Pois já não vos<br />
disse mil vezes? É porque quase todos os homens são malucos. A ignorância tem, pois, dois<br />
grandes privilégios: um, que consiste em estar de perfeito acordo com o amor próprio, e<br />
outro, que consiste em trazer em si a maior parte do gênero humano. Por conseguinte,<br />
seríeis duas vezes ingênuos se quisésseis elevar-vos acima do nível comum, com to<strong>da</strong> a<br />
vossa ciência filosófica. Que pensais que obteríeis com isso? Podeis estar certos de que,<br />
além de vos custar muito caro semelhante propósito, chegaríeis ao ponto de não saberdes<br />
tolerar mais ninguém e de não poderdes por mais ninguém ser tolerados. Resultaria, enfim,<br />
que ninguém seria capaz de apreciar o vosso gênio e de penetrar os vossos sentimentos.<br />
Parece-me de novo oportuno fazer outra reflexão sobre o amor próprio. Façamo-la<br />
juntos. Todo homem, ao nascer, recebe o seu amor próprio como um dom <strong>da</strong> natureza.<br />
Mas, essa mãe comum não se limitou apenas ao homem, pois fez o mesmo presente à<br />
socie<strong>da</strong>de, de maneira que não se acha uma única nação, uma única ci<strong>da</strong>de que não tenha o<br />
seu gosto particular. Os ingleses, por exemplo, amam com transporte a beleza, a música e<br />
os banquetes lautos; os escoceses dão grande valor à nobreza e, sobretudo, à que deriva do<br />
sangue do seu rei, gabando-se, além disso, de serem raciocinadores sutis; os franceses<br />
atribuem-se a polidez e a civili<strong>da</strong>de, sendo que sobretudo os parisienses gabam a sua<br />
teologia; os italianos decantam a sua literatura e sua eloqüência. Em suma, ca<strong>da</strong> nação se<br />
compraz em ser a única ver<strong>da</strong>deiramiente civiliza<strong>da</strong> e sem sombra de barbarismo. Pode<br />
dizer-se que os romanos são os mais enfatuados desse gênero de felici<strong>da</strong>de: Roma moderna<br />
sonha ain<strong>da</strong> participar <strong>da</strong> grandeza de Roma antiga. Os venezianos são felizes pela alta<br />
opinião que têm <strong>da</strong> própria nobreza. Vangloriam-se os gregos de terem sido os inventores<br />
<strong>da</strong>s artes e <strong>da</strong>s ciências, além de serem os descendentes dos famosos heróis que em seu<br />
tempo tanto estrépito fizeram no mundo. Os turcos e todos os outros povos semelhantes,<br />
que não passam, afinal, de um ajuntamento de bárbaros, se jactam de serem os únicos que<br />
vivem no seio <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deira religião, ridicularizando as superstições e a idolatria dos<br />
cristãos. E que direi dos judeus? Estes vivem satisfeitíssimos, à espera do seu Messias, e,<br />
muito longe de impacientar-se pela enorme demora, obstinam-se ca<strong>da</strong> vez mais em esperálo,<br />
achando que não podem em absoluto estar enganados, apoiados como se encontram nas<br />
promessas do seu Moisés. Os espanhóis reservam para si to<strong>da</strong> a glória <strong>da</strong> guerra.<br />
Finalmente, os alemães se pavoneiam por sua natureza gigantesca e por sua habili<strong>da</strong>de na<br />
ciência <strong>da</strong> magia.<br />
Mas, vamos! Liquidemos logo o assunto, que seria interminável. Estais vendo, agora, se<br />
não me engano, como o amor próprio difunde por to<strong>da</strong> parte grandes alegrias, quer nos<br />
indivíduos, quer nas nações. Ao lado do amor próprio, acha-se sempre a sua boa irmã — a