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Elogio da Loucura - CFH

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se sujeitou espontaneamente, na ânsia excessiva de se vingar do veado seu inimigo. Bem<br />

mais desejável é a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s moscas e dos pássaros, por nascerem livres e tomar a natureza o<br />

encargo de nutrí-los. Seriam mesmo perfeitamente felizes e tranqüilos se não devessem<br />

temer as insídias dos homens. Não imaginais quanto perdem os pássaros <strong>da</strong> sua primitiva<br />

beleza, quando aprendem, nas gaiolas, os nossos cantos. E tanto isso é ver<strong>da</strong>de, sob todos<br />

os aspectos, que as produções <strong>da</strong> natureza ultrapassam de muito as <strong>da</strong> arte.<br />

Por tudo isso, nunca terei louvado bastante a Pitágoras por se ter transformado em galo.<br />

Esse filósofo, em virtude <strong>da</strong> metempsicose, passou por todos os estados: filósofo, homem,<br />

mulher, rei, confidente, peixe, cavalo, rã e creio até que esponja. E, depois de to<strong>da</strong>s essas<br />

transmigrações, declarou que o homem era o mais infeliz de todos os animais, pois todos os<br />

outros estão satisfeitos de ficar nos limites prefixados pela natureza, enquanto só o homem<br />

se esforça por ultrapassá-los. Aiém disso, Pitágoras costumava antepor os tolos aos sábios e<br />

aos grandes. Tal era, também, a opinião de Grilo, um dos companheiros do sensato Ulisses,<br />

o qual, tendo sido transformado em porco pela bruxa Circe, preferia grunhir tranqüilo e à<br />

vontade num chiqueiro a an<strong>da</strong>r na pista de novos perigos e novas aventuras com o seu<br />

general. Parece-me, também, que o próprio Homero, o célebre pai <strong>da</strong> mitologia, não<br />

diverge dessa opinião, pois que, em geral, considera miseráveis todos os mortais e diz que a<br />

morte os cerca por to<strong>da</strong> a parte. Nem mesmo Ulisses, o seu famoso herói e modelo de<br />

sabedoria, constitui para ele uma exceção, pois chega a lhe aplicar, várias vezes, o epíteto<br />

de infeliz. No entanto, não diz o mesmo de Paris, de Ajax e de Aquiles, que eram loucos.<br />

Pelo contrário: como Ulisses fosse engenhoso e astuto e seguisse os conselhos de Minerva,<br />

preferindo-os a tudo mais, Homero deplorou a infelici<strong>da</strong>de desse rei de Ítaca.<br />

Voltando, pois, ao meu assunto, afirmo que os que se aplicam ao estudo <strong>da</strong>s ciências<br />

estão muito longe <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de e são duplamente loucos, porque, esquecendo-se de sua<br />

condição natural e querendo viver como outros tantos deuses, fazem à natureza, com as<br />

máquinas de arte, uma guerra de gigantes. De tudo isso, infiro que os ver<strong>da</strong>deiros felizardos<br />

são os que mais se aproximam <strong>da</strong> índole e <strong>da</strong> estupidez dos brutos, sem empreenderem<br />

na<strong>da</strong> que esteja acima <strong>da</strong>s forças humanas.<br />

Pois bem! Tratemos de defender esse argumento, não com as antinomias dos estóicos,<br />

mas com um exemplo palmar. Deuses imortais, julgai-o! Quem no mundo viverá mais feliz<br />

do que os vulgarmente chamados bobos, tolos insensatos e imbecís? Ah! como acho<br />

bonitos esses nomes! Quero dizer-vos uma coisa que, à primeira vista, talvez tomeis por<br />

extravagante e absur<strong>da</strong>. Mas, que importa? Apesar disso, não quero deixar de vo-la dizer,<br />

tanto mais quanto é superior a qualquer outra ver<strong>da</strong>de.<br />

Respondei-me: é ou não exato que os homens que se julgam privados de sentimento<br />

nenhum medo têm <strong>da</strong> morte? E esse medo — por Baco! — não é um mal indiferente! Além<br />

disso, estão isentos dos terríveis remorsos <strong>da</strong> consciência; não temendo nem fantasmas nem<br />

trevas, não são atormentados pela perpétua perspectiva dos males; não são enganados pela<br />

vã esperança de futuros bens. Em suma os seus dias não são envenenados pela infinita série<br />

de cui<strong>da</strong>dos a que está sujeita a vi<strong>da</strong>. A desonra, o temor, a ambição, a inveja, o amor, a<br />

amizade, são coisas inteiramente estranhas para eles, pois gozam <strong>da</strong> incomparável<br />

vantagem de só na forma diferirem dos animais. Mas, isso não basta, pois que, segundo a<br />

opinião dos teólogos, chegam a ser impecáveis. Isso posto, tornai a consultar ain<strong>da</strong> uma vez<br />

o vosso íntimo, oh insensatos partidários <strong>da</strong> sabedoria! Ponderai, examinai atentamente<br />

quantas aflições do espírito vos atormentam dia e noite; reuni em bloco, sob os vossos<br />

olhos, todos os diversos males <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>; e julgai finalmente, por vós mesmos, quanto é<br />

grande a felici<strong>da</strong>de que proporciono aos meus insensatos. Não gozam eles apenas de um

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