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Elogio da Loucura - CFH

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ain<strong>da</strong> a seiscentos outros. Sempre famélicos e sujos nas suas escolas, ou melhor, nas suas<br />

cadeias ou lugares de suplícios e de tormentos, no meio de um rebanho de meninos,<br />

envelhecem de fadiga, tornam-se surdos com o barulho, ficam tísicos com o fedor e a<br />

imundície. No entanto, quem o diria? Graças a mim, os pe<strong>da</strong>ntes se julgam os primeiros<br />

homens do mundo. Não podeis imaginar o prazer que experimentam fazendo tremer os seus<br />

tímidos súditos com um ar ameaçador e uma voz altissonante. Armados de chicote, de vara,<br />

de correia, não fazem senão decidir o castigo, sendo ao mesmo tempo partes, juizes e<br />

carrascos. Parecem-se mesmo com o burro <strong>da</strong> fábula, o qual, por ter às costas uma pele de<br />

leão, julgava-se tão valoroso como este. A sua imundície afigura-se-lhes asseio; o fedor<br />

serve-lhes de perfume; e, acreditando-se reis em meio à sua miserabilíssima escravidão, não<br />

desejariam trocar as próprias tiranias pelas de Falaris ou de Dionísio (79). O que,<br />

sobretudo, contribui para torná-los felizes é a idéia que fazem <strong>da</strong> própria erudição. Embora<br />

não façam senão meter palavras insignificantes e insulsas frivoli<strong>da</strong>des na cabeça <strong>da</strong>s<br />

crianças confia<strong>da</strong>s aos seus cui<strong>da</strong>dos — santo Deus! — consideram um na<strong>da</strong> diante deles<br />

os Palêmones e os Donatos (80). Nem mesmo sei com que meios conseguem lisonjear as<br />

estúpi<strong>da</strong>s mães e os idiotas pais dos alunos, ao ponto de serem realmente considerados<br />

como os ilustres homens que eles próprios se inculcam. Acrescentemos a isso outro gênero<br />

de prazer por eles experimentado to<strong>da</strong> vez que conseguem descobrir, num velho papelucho<br />

todo sujo e comido de traças, o nome <strong>da</strong> mãe de Anquises ou alguma palavra geralmente<br />

desconheci<strong>da</strong>, — bubsequam, por exemplo, bovinatorem, manticulatorem — ou quando<br />

têm a sorte de encontrar um pe<strong>da</strong>ço de lápide antiga, na qual se encontrem caracteres<br />

truncados. Ah! por Júpiter imortal! que tripúdio, que triunfo, que aplausos! Não foi<br />

certamente maior a alegria de Cipião ao subjugar a África, nem a de Dario ao conquistar a<br />

Babilônia. É indizível a alegria experimenta<strong>da</strong> por esses pe<strong>da</strong>ntes, quando, ao lerem de<br />

porta em porta os seus versos gelados e insulsos, encontram por acaso algum admirador.<br />

Logo se julgam novos Virgílios e não sei se se gabam de que a alma de Marão lhe tenha<br />

passado pelo cérebro. Oh! como é bonito vê-los trocar, entre si, elogio por elogio,<br />

admiração por admiração, lisonja por lisonja! Se acontece que um homem <strong>da</strong> arte erra em<br />

alguma sintaxe e outro mais penetrante do que ele o percebe — santo Deus! — que cenas,<br />

discussões, que injúrias, que invectivas!<br />

A propósito de gramática, quero contar-vos uma bonita história: a história é verídica e,<br />

se eu estiver mentindo, quero ter todos os gramáticos contra mim (vede só que terrível<br />

declaração!). Conheço um homem de sessenta anos que conhece perfeitamente o grego, o<br />

latim, as matemáticas, a filosofia, a medicina. Pois seríeis capazes de advinhar com que se<br />

preocupa esse sábio universal, há uns vinte anos? Tendo abandonado todos os estudos,<br />

dedica-se exclusivamente à gramática, pondo o cérebro num tormento contínuo. Só ama a<br />

vi<strong>da</strong> para ter tempo de dirimir algumas dificul<strong>da</strong>des dessa importante arte, e morreria<br />

satisfeito se descobrisse um método seguro de distinguir bem as oito partes do discurso,<br />

coisa que, a seu ver, não conseguiram com perfeição nem os gregos nem os latinos. Bem<br />

vedes que é uma questão de suma importância para o gênero humano. Com efeito, não é<br />

mesmo uma miséria estar sempre correndo o risco de tomar uma conjunção por advérbio?<br />

Um tal equívoco mereceria uma guerra cruenta.<br />

Quero, agora, observar-vos que há mais gramáticas do que gramáticos: só Aldo, um dos<br />

meus favoritos nesse gênero, publicou cinco. Pois bem: o meu cabeçudo estu<strong>da</strong>-as to<strong>da</strong>s,<br />

mesmo quando escritas num estilo bárbaro e insuportável; analisa-as to<strong>da</strong>s, <strong>da</strong> primeira até<br />

à última, causando profun<strong>da</strong> inveja aos que escrevem tão mal sobre o assunto e torturado<br />

sempre pela dúvi<strong>da</strong> de que possam roubar-lhe a glória e o fruto de suas longas fadigas. Que

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