18.04.2013 Views

Elogio da Loucura - CFH

Elogio da Loucura - CFH

Elogio da Loucura - CFH

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

do que mãe, imprimiu nos homens, sobretudo nos mais sensatos, uma fatal inclinação no<br />

sentido de ca<strong>da</strong> qual não se contentar com o que tem, admirando e almejando o que não<br />

possui: <strong>da</strong>í o fato de todos os bens, todos os prazeres, to<strong>da</strong>s as belezas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> se<br />

corromperem e reduzirem a na<strong>da</strong>. Que adianta um rosto bonito, que é o melhor presente<br />

que podem fazer os deuses imortais, quando contaminado pelo mau cheiro? De que serve a<br />

juventude, quando corrompi<strong>da</strong> pelo veneno de uma hipocondria senil? Como, finalmente,<br />

podereis agir em todos os deveres <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, quer no que diz respeito aos outros, quer a vós<br />

mesmos, como, — repito — podereis agir com decoro (pois que agir com decoro constitui<br />

o artifício e a base principal de to<strong>da</strong> ação), se não fordes auxiliados por esse amor próprio<br />

que vedes à minha direita e que mereci<strong>da</strong>mente me faz as vezes de irmã, não hesitando em<br />

tomar sempre o meu partido em qualquer desavença? Vivendo sob a sua proteção, ficais<br />

encantados pela excelência do vosso mérito e vos apaixonais por vossas exímias<br />

quali<strong>da</strong>des, o que vos proporciona a vantagem de alcançardes o supremo grau de loucura.<br />

Mais uma vez repito: se vos desgostais de vós mesmos, persuadi-vos de que na<strong>da</strong> podereis<br />

fazer de belo, de gracioso, de decente. Rouba<strong>da</strong> à vi<strong>da</strong> essa alma, languesce o orador em<br />

sua declamação, inspira pie<strong>da</strong>de o músico com suas notas e seu compasso, ver-se-á o<br />

cômico vaiado em seu papel, provocarão o riso o poeta e as suas musas, o melhor pintor<br />

não conquistará senão críticas e desprezo, morrerá de fome o médico com to<strong>da</strong>s as suas<br />

receitas, em suma Nereu (34) aparecerá como Tersites, Faão como Nestor, Minerva como<br />

uma porca, o eloqüente como um menino, o civilizado como um bronco. Portanto, é<br />

necessário que ca<strong>da</strong> qual lisonjeie e adule a si mesmo, fazendo a si mesmo uma boa coleção<br />

de elogios, em lugar de ambicionar os de outrem. Finalmente, a felici<strong>da</strong>de consiste,<br />

sobretudo, em se querer ser o que se é. Ora, só o divino amor próprio pode conceder<br />

tamanho bem. Em virtude do amor próprio, ca<strong>da</strong> qual está contente com seu aspecto, com<br />

seu talento, com sua família, com seu emprego, com sua profissão, com seu país, de forma<br />

que nem os irlandeses desejariam ser italianos, nem os trácios atenienses, nem os citas<br />

habitantes <strong>da</strong>s ilhas Fortuna<strong>da</strong>s. Oh surpreendente providência <strong>da</strong> natureza! Em meio a uma<br />

infinita varie<strong>da</strong>de de coisas, ela soube pôr tudo no mesmo nível. E, se não se mostrou avara<br />

na concessão de dons aos seus filhos, mais pródiga se revelou ain<strong>da</strong> ao conceder-lhes o<br />

amor próprio. Que direi dos seus dons? É uma pergunta tola. Com efeito, não será o amor<br />

próprio o maior de todos os bens?<br />

Mas, para vos mostrar que tudo quanto entre os homens existe de célebre, estupendo, de<br />

glorioso, é tudo obra minha, quero começar pela guerra. Não se pode negar que essa grande<br />

arte seja a fonte e o fruto <strong>da</strong>s mais estrepitosas ações. No entanto, que coisa se poderia<br />

imaginar de mais estúpido que a guerra? Dois exércitos se batem (sabe Deus por que<br />

motivo) e <strong>da</strong> sua animosi<strong>da</strong>de obtêm muito mais prejuízo do que vantagem. Os que morrem<br />

inutilmente na guerra são incontáveis como os megareses (35). Além disso, dizei-me: que<br />

serviço poderiam prestar os sábios, quando os exércitos se estendem em ordem de combate<br />

e reboam no espaço o rouco som <strong>da</strong>s cometas e o rufar dos tambores, ao passo que eles,<br />

definhados pelo estudo e pela meditação, arrastam com dificul<strong>da</strong>de uma vi<strong>da</strong> que se tornou<br />

enferma pelo pouco sangue, frio e sutil, que lhes circula nas veias? (36) São necessários<br />

homens troncudos e grosseiros, robustos e au<strong>da</strong>zes, mas de muito pouco talento, sim, são<br />

necessárias justamente semelhantes máquinas para o mister <strong>da</strong>s armas. Quem poderá conter<br />

o riso ao ver Demóstenes far<strong>da</strong>do, para que, seguindo o sábio conselho de Arquíloco (37),<br />

mal aviste inimigo, jogue fora o escudo e se ponha a correr sem parar, pouco lhe<br />

importando que se revele, assim, um sol<strong>da</strong>do tão covarde quanto excelente orador?<br />

Podereis dizer-me que a guerra exige grande prudência. Concordo convosco, mas

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!