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Elogio da Loucura - CFH

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ver<strong>da</strong>deiramente minha. E esses malandros não dizem sequer uma palavra a respeito?<br />

Abertamente e sem parábolas, eu prometi, outrora, a herança do meu Pai, não às túnicas,<br />

nem às oraçõezinhas, nem à inédia, mas à observância <strong>da</strong> cari<strong>da</strong>de. Não, não reconheço<br />

pessoas que apreciam demais as suas pretensas obras meritórias e querem parecer mais<br />

santas do que eu próprio. Procurem, se quiserem, um céu aparte. Mandem construir um<br />

paraíso por aqueles cujas frívolas tradições eles preferiram à santi<strong>da</strong>de dos meus preceitos.<br />

— Qual não será a consternação de todos eles, ao ouvirem tão terrível sentença e ao verem<br />

que se lhes antepõem os barqueiros e os carroceiros? No entanto, a despeito de tudo isso,<br />

são sempre felizes com suas vãs esperanças, o que, em substância, não é senão o efeito <strong>da</strong><br />

minha bon<strong>da</strong>de para com eles.<br />

Não posso deixar de vos <strong>da</strong>r, aqui, um conselho salutar: nunca desprezeis essa vaga<br />

geração bastar<strong>da</strong> (os mendigos, sobretudo), embora ela viva separa<strong>da</strong> <strong>da</strong> república. É que os<br />

frades, por meio do canal que se chama a confissão, estão ao par de todos os mais íntimos<br />

segredos <strong>da</strong>s pessoas. Não se pode dizer que ignorem ser um delito capital a revelação <strong>da</strong>s<br />

coisas ouvi<strong>da</strong>s no tribunal <strong>da</strong> penitência. Isso, porém, não impede que o façam em diversas<br />

circunstâncias, sobretudo quando, alegres e esquentados pelo vinho, querem divertir-se<br />

contando histórias engraça<strong>da</strong>s. É ver<strong>da</strong>de que, para isso, usam <strong>da</strong>s maiores cautelas, pois<br />

em geral não citam os nomes <strong>da</strong>s pessoas. Desgraçado <strong>da</strong>quele que irritar esses zangões <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de! A vingança vem pronta como um raio do céu. Subitamente, no primeiro<br />

discurso ao povo, lançam os seus <strong>da</strong>rdos contra o inimigo, tão bem pintado pelo padre<br />

pregador com suas caridosas invectivas que seria preciso ser cego para não saber a quem<br />

visam atingir. E o mastim só deixará de ladrar quando, a exemplo do que fez Enéias com o<br />

Cérbero, lhe taparem a boca com fogaças. Já que falamos desses bons apóstolos no púlpito,<br />

dizei-me se não é ver<strong>da</strong>de que abandonaríeis qualquer charlatão, qualquer saltimbanco,<br />

para ouvir os seus ridículos discursos. Bem poderiam eles chamar-se, com to<strong>da</strong> a honra, os<br />

macacos dos retóricos, tal é o prazer que experimentam ao imitar as regras estabeleci<strong>da</strong>s<br />

pelos retóricos sobre a arte de falar. Santo Deus! observai como gesticulam, corno são<br />

mestres em modular a voz, como cantam, como se remexem, como ficam senhores do<br />

assunto, como fazem retumbar to<strong>da</strong> a igreja com os seus socos e os seus berros. É no<br />

silêncio do claustro que eles apreendem essa veemente maneira de evangelizar, que passa<br />

de um fradeco a outro como um segredo de suma importância. Sendo eu apenas uma divina<br />

mulherzinha, não me é lícito iniciar-me em tão profundos mistérios, mas não quero deixar<br />

de vos dizer o que tenho podido anotar por bom preço.<br />

Principiam sempre as suas mixórdias com uma invocação toma<strong>da</strong> de empréstimo aos<br />

poetas, e fazem um exórdio sem relação alguma com o assunto que devem abor<strong>da</strong>r. Devem,<br />

por exemplo, pregar a cari<strong>da</strong>de? Começam pelo rio Nilo. Devem pregar sobre o mistério <strong>da</strong><br />

cruz? Começam pelo Belo, o fabuloso dragão <strong>da</strong> Babilônia (89). Devem pregar o jejum<br />

quaresmal? Começam pelas doze constelações do zodíaco. Devem pregar a fé? Começam<br />

pela quadratura do círculo. E assim por diante. Eu mesma, que vos falo, já ouvi uma vez<br />

um desses pregadores, homem de uma loucura consuma<strong>da</strong> (perdoai-me, atrapalho-me<br />

sempre), queria dizer de uma doutrina consuma<strong>da</strong>.<br />

Esse homem devia explicar o impenetrável mistério <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong>de, mas, para patentear a<br />

sublimi<strong>da</strong>de do seu engenho e para contentar os ouvidos dos teólogos, não quis seguir o<br />

caminho habitual. E que estra<strong>da</strong> tomou? Era mesmo preciso um homem <strong>da</strong> sua envergadura<br />

para fazer a escolha. Começou o discurso pelo alfabeto e, depois de ter, com prodigiosa<br />

memória, recitado exatamente o A B C passou <strong>da</strong>s letras às sílabas, <strong>da</strong>s sílabas às palavras,<br />

<strong>da</strong>s palavras à concordância do sujeito com o verbo e do substantivo com o adjetivo.

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