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Elogio da Loucura - CFH

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imaginando que assistia a uma magnífica representação, embora na reali<strong>da</strong>de na<strong>da</strong> se<br />

representasse, ria, aplaudia e divertia-se à grande. Fora dessa loucura, ele era, em tudo o<br />

mais, uma ótima pessoa: complacente e fiel com os amigos; terno, cortês, condescendente<br />

com a mulher; indulgente com os escravos, não se enfurecendo quando via quebrar-se uma<br />

garrafa. Seus parentes deram-se ao incômodo de curá-lo com heléboro; mal, porém, ele<br />

voltou ao estado que impropriamente se chama de bom senso, dirigiu-lhe esta bela e sensata<br />

apóstrofe: “Meus caros amigos, que fizeram vocês? Pretendem ter-me curado e, no entanto,<br />

mataram-me; para mim, acabaram-se os prazeres: vocês me tiraram uma ilusão que<br />

constituía to<strong>da</strong> a minha felici<strong>da</strong>de”. Tinha sobras de razão esse convalescente, e os que, por<br />

meio <strong>da</strong> arte médica, julgaram curá-lo, como de um mal, de tão feliz e agradável loucura,<br />

mostraram precisar mais do que ele de uma boa dose de heléboro.<br />

Ain<strong>da</strong> não decidi se se deva ou não chamar indistintamente de loucura todo erro de<br />

espírito e do senso. É que, em geral, dizemos ser louco todo aquele que, sendo curto de<br />

vistas, toma um burro por jumento, ou que, por ter pouco discernimento, considera<br />

excelente um mau poema. Ao mesmo tempo, quando um homem comete um estranho erro,<br />

não só de senso, mas também de inteligência, nele persistindo longamente, — por exemplo,<br />

quando, ao escutar o zurro de um burro, julga ouvir uma sinfonia ou, então, quando,<br />

embora pobre e de origem humilde, imagina ser o rei Creso, <strong>da</strong> Lídia (70) — nesse caso, se<br />

diz que o pobrezinho perdeu o miolo. Mas, essa loucura, quando dirigi<strong>da</strong> a um objeto de<br />

prazer, como costuma acontecer quase sempre, bastante agradável se torna tanto para os<br />

que a têm como para os que são meros espectadores. Assim, essa espécie de loucura é bem<br />

mais espalha<strong>da</strong> do que em geral se pensa. Às vezes, é um louco que se ri de outro louco,<br />

divertindo-se ambos mutuamente. Também não é raro ver-se um mais louco rir-se muito de<br />

outro menos do que ele. Mas, na minha opinião, o homem é tanto mais feliz quanto mais<br />

numerosas são as suas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de loucura, contanto que não saia <strong>da</strong> espécie que nos é<br />

peculiar e que é tão espalha<strong>da</strong> que eu não saberia dizer se haverá, em todo o gênero<br />

humano, um só indivíduo que seja sempre sábio e não tenha também a sua mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de. Se<br />

alguém, ao ver uma abóbora, a tomasse por uma mulher, dir-se-ia ser o pobrezinho um<br />

louco. A razão disso é que semelhante perturbação raras vezes costuma aparecer entre nós.<br />

Mas, quando um marido imbecil adora a mulher, julgando-a mais fiel do que Penélope,<br />

mesmo que ela lhe faça crescer na cabeça um bosque de chifres, e intimamente se felicita,<br />

bendizendo enormemente o seu destino e <strong>da</strong>ndo graças a Deus por o ter unido a semelhante<br />

Lucrécia, — ninguém acha que se trate de loucura, porque isso, hoje em dia, é a coisa mais<br />

natural deste mundo. Nessa categoria, é preciso incluir também os que desprezam tudo a<br />

não ser a caça, não concebendo maior prazer que o de ouvir o rouco som <strong>da</strong> trompa e os<br />

latidos dos cães. Creio mesmo que, ao sentirem o cheiro dos excrementos caninos,<br />

imaginam estar cheirando sinomônio. Trata-se de despe<strong>da</strong>çar uma presa? Oh! incomparável<br />

delícia! Degolar, esfolar, cortar um boi ou um carneiro? Ah! é um mister vil, digno somente<br />

<strong>da</strong> ralé! Mas, um bicho do mato? Oh! a honra de cortar um bicho do mato é reserva<strong>da</strong><br />

unicamente às pessoas de alta linhagem! O monteiro-mor, com a cabeça descoberta e de<br />

joelhos, pega o facão sagrado para esse sacrifício (pois Diana se ofenderia se se servisse de<br />

outro) e, empunhando o ferro com a mão direita, corta religiosamente determinados<br />

membros do animal, fazendo tudo com certa ordem e com cerimônias especiais. E, durante<br />

a pomposa operação, todo o bando de caçadores acerca-se do sacerdote de Diana,<br />

observando profundo silêncio e mostrando, ao assistir ao espetáculo mil vezes visto, a<br />

mesma surpresa que teria se fosse a primeira vez. Em segui<strong>da</strong>, aquele a quem cabe a sorte<br />

de provar um pe<strong>da</strong>ço <strong>da</strong> caça julga ter conquistado ain<strong>da</strong> mais nobreza. Por fim, os

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