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Elogio da Loucura - CFH

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morte! Percorramos, ain<strong>da</strong> uma vez, esse deplorável caminho. Que horrível e varia<strong>da</strong><br />

multiplici<strong>da</strong>de de males! Quantos desastres, quantos incômodos se encontram na vi<strong>da</strong>!<br />

Enfim não há prazer que não tenha o amargor de muito fel. Quem poderia descrever a<br />

infinita série de males que o homem causa ao homem, como sejam a pobreza, a prisão, a<br />

infâmia, a desonra, os tormentos, a inveja, as traições, as injúrias, os conflitos, as fraudes,<br />

etc.? Eu não saberia dizer-vos que delito teria o homem cometido para merecer tão grande<br />

quanti<strong>da</strong>de de males, nem que deus furioso o teria constrangido a nascer em tão horrível<br />

vale de misérias. Assim, pois, quem quer que examine a fundo a miserabilíssima condição<br />

do gênero humano, não poderá, decerto, deixar de aprovar o exemplo <strong>da</strong>s virgens de Mileto<br />

(57), embora seja um exemplo digno de to<strong>da</strong> a compaixão.<br />

Quais foram os mais célebres desgostosos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que procuraram espontaneamente a<br />

morte? Não foram, porventura, os amigos mais próximos <strong>da</strong> sabedoria? Para não falar de<br />

Diógenes, Xenócrates, Catão, Cássio, Bruto, lembro apenas o famoso Quirão (58), que<br />

preferiu a morte à imortali<strong>da</strong>de. Já sei que logo compreendereis quanto o mundo duraria<br />

pouco, se a sabedoria fosse comum entre os mortais. Sou mesmo de opinião que, em breve,<br />

haveria necessi<strong>da</strong>de de uma nova argila e de um novo Prometeu (59). Mas, também nesse<br />

caso, sou eu quem providencia, mantendo os homens na ignorância, na irreflexão, no<br />

esquecimento dos males passados e na esperança de um futuro melhor. Misturando as<br />

minhas doçuras com as <strong>da</strong> volúpia, eu amenizo o rigor do seu destino. Amam a vi<strong>da</strong> não só<br />

quase todos os homens, como até aqueles cujo fio <strong>da</strong> existência está prestes a ser cortado<br />

pela morte, aqueles que devem deixar a vi<strong>da</strong> depois de um bom número de anos. Eles não<br />

mostram nenhuma pressa de passar para o número dos mortos. Quanto mais motivos têm os<br />

homens para viver contra a própria vontade, tanto menos se enojam <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, evidenciando<br />

que não acham excessivamente longos os seus dias. São um efeito <strong>da</strong> minha bon<strong>da</strong>de esses<br />

velhos que vedes alcançar a nestória decrepitude e que de humano só possuem a figura. Por<br />

isso é que são gagos, delirantes, desdentados, encanecidos, calvos, ou, para descrevê-los<br />

melhor, com as palavras de Aristófanes, enrugados, corcun<strong>da</strong>s, sem nenhum resto de<br />

virili<strong>da</strong>de. E, não obstante, amam com transporte a vi<strong>da</strong>. Não se limitam esses velhotes<br />

insensatos aos prazeres <strong>da</strong> existência, mas se esforçam ain<strong>da</strong> por imitar, o quanto podem, a<br />

juventude: um enegrece os cabelos brancos; outro esconde com uma cabeleira a cabeça<br />

calva; outro põe dentes tomados de empréstimo de algum porco; outro se apaixona<br />

loucamente por uma moça e faz por ela loucuras que envergonhariam um rapazinho.<br />

Estamos tão habituados a ver um homem todo curvado ao peso dos anos e que já não<br />

enxerga a terra em que está para descer, a vê-lo, repito, casar-se com uma mocinha sem<br />

dote, e casar-se, certamente, mais para o de outrem do que para o próprio uso, que isso se<br />

torna quase um motivo de louvor.<br />

Eis, porém, um quadro ain<strong>da</strong> mais divertido: aquelas velhas apaixona<strong>da</strong>s, aqueles<br />

cadáveres semivivos que parecem ter saído do Érebo e já estão fedendo à carniça, ain<strong>da</strong><br />

sentem arder o coração. Lascivas como cadelas no cio, só respiram uma porca sensuali<strong>da</strong>de<br />

e dizem descara<strong>da</strong>mente que sem volúpia a vi<strong>da</strong> não vale na<strong>da</strong>. Essas velhas cabras ain<strong>da</strong><br />

fazem o amor e, quando encontram algum Faão (60), costumam remunerar generosamente<br />

a repugnância que causam. Então, mais do que nunca, se esmeram na pintura do rosto,<br />

passam a vi<strong>da</strong> diante do espelho, arrancam fios brancos de barba, ostentam dois seios<br />

flácidos e enrugados, cantam com voz rouquenha e hesitante para despertar a lângui<strong>da</strong><br />

concupiscência, bebem à grande, intrometem-se nas <strong>da</strong>nças <strong>da</strong>s moças, escrevem cartas<br />

amorosas, — eis os meios que essas velhas raposas empregam para <strong>da</strong>r coragem aos seus<br />

custosos campeões. Enquanto isso, a socie<strong>da</strong>de exclama: — Que velhas malucas! Que

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