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Elogio da Loucura - CFH

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vinho sem perceber, — assim também os sensuais têm um grande vigor de ânimo pelos<br />

sentidos do corpo e uma fraqueza extrema pelos <strong>da</strong> alma. Além disso, há algumas paixões<br />

que afetam o corpo mais de perto, como o amor, a fome, a sede, o sono, a cólera, a<br />

soberbia, a inveja, contra as quais movem os ver<strong>da</strong>deiros devotos, se é que os há, uma<br />

perpétua guerra, ao passo que os adeptos <strong>da</strong> natureza acham que não podem viver sem essas<br />

coisas. Existem ain<strong>da</strong> outras que têm um lugar intermédio e são considera<strong>da</strong>s naturais,<br />

como sejam: amar a pátria, os parentes, os filhos diletos, os vizinhos, os amigos. Quase<br />

todos os homens possuem algo dessas paixões, mas as pessoas pias fazem tudo para<br />

extirpá-las do coração ou ao menos espiritualizá-las. Um filho, por exemplo, ama seu pai:<br />

julgais que ele honre a paterni<strong>da</strong>de e ame de fato aquele de quem recebeu a vi<strong>da</strong>? — Ora<br />

essa! Que foi que me deu meu pai, — diz o devoto, — a não ser esse corpo miserável, que é<br />

o meu pior inimigo? Aliás, também isso eu o devo a Deus, único e ver<strong>da</strong>deiro autor do meu<br />

ser. Amo meu pai como um homem em quem resplende a imagem <strong>da</strong>quela suprema<br />

inteligência que é o bem supremo e fora <strong>da</strong> qual na<strong>da</strong> existe de amável nem de desejável. —<br />

É também com essa regra que as pessoas de mortificação misturam todos os deveres <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>, de modo que, quando não desprezam em geral to<strong>da</strong>s as coisas visíveis, pelo menos as<br />

põem infinitivamente abaixo <strong>da</strong>s invisíveis.<br />

Chegam mesmo a dizer que, nos sacramentos e nas outras funções do culto, não existiria<br />

a matéria sem o espírito. Nos dias de jejum, acreditam que seja quase na<strong>da</strong> a abstinência<br />

<strong>da</strong>s carnes e <strong>da</strong> ceia, se bem que a maioria faça consistir nesses dois pontos to<strong>da</strong> a<br />

obrigação do preceito. Os devotos vos dizem que é preciso jejuar com o espírito, dominar<br />

as próprias paixões, suprimir a cólera e o orgulho, a fim de que a alma, mais<br />

desembaraça<strong>da</strong> <strong>da</strong> massa do corpo, possa melhor gozar dos bens do céu. O mesmo acontece<br />

em relação à missa: — Se bem que não desprezemos — dizem eles — tudo o que é visível<br />

nesse sacrifício, to<strong>da</strong>via, os sinais não seriam menos inúteis que as cerimônias, quando não<br />

perniciosos, se não fosse o socorro do espirito. — Representando esse mistério a paixão do<br />

Salvador, faz-se mister que a representem também os fiéis, dominando, extinguindo e<br />

sepultando suas paixões, a fim de ressurgirem numa nova vi<strong>da</strong> e se unirem a Cristo e aos<br />

seus membros. Os devotos costumam assistir à santa misa com a referi<strong>da</strong> diposição, mas o<br />

mesmo não acontece com a maior parte dos homens, que, não reconhecendo nesse<br />

sacrifício senão a obrigação de comparecer, contentam-se em olhar, ouvir, prestar atenção<br />

ao canto e às cerimônias. Mas, não é só no que diz respeito às coisas que acabo de vos<br />

referir a título de exemplo que os anjos mortais rompem to<strong>da</strong> relação com os corpos e com<br />

a matéria: para se elevarem aos bens eternos, e invisíveis e espirituais, fazem o mesmo com<br />

tudo o que acontece no curso <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Vós mesmos não podereis negar, quando eu vo-lo tiver brevemente demonstrado, que a<br />

infinita recompensa deseja<strong>da</strong> que buscam com tanta ansie<strong>da</strong>de não é senão uma espécie de<br />

furor, Confirmo o meu sentimento com um oráculo do divino Platão: O furor dos amantes<br />

— diz o entusiasta filósofo — é de todos o mais feliz. Com efeito, um amante apaixonado<br />

não vive mais em si mesmo, mas na pessoa que se apoderou do seu coração, e, quanto mais<br />

sai de si mesmo para transfundir-se no objeto do seu amor, tanto mais sente redobrar-se o<br />

seu prazer. Não teremos igualmente razão de qualificar com o nome de furor o próprio<br />

estado de uma alma devota que arde de desejo por alcançar a perfeição evangélica e que<br />

não procura senão sair do seu corpo pelo desprezo dos sentidos? Trazei à vossa memória os<br />

modos de dizer freqüentemente usados: Está fora de si... Voltou a si... Caiu em si... Além<br />

disso, segundo a idéia de Platão, pelo grau de amor é preciso medir a grandeza do furor e <strong>da</strong><br />

felici<strong>da</strong>de. Qual será, pois, a vi<strong>da</strong> dos beatos no paraíso, vi<strong>da</strong> pela qual suspiram as almas

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