You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
velhas malucas! — Mas, se a socie<strong>da</strong>de tem razão, elas se riem e, imersas nos prazeres,<br />
aproveitam a felici<strong>da</strong>de que lhes proporciono. Eu desejaria que esses censores indiscretos<br />
soubessem dizer-me o que será mais estúpido: viver alegre e satisfeito, ou eternamente<br />
desesperado até se enforcar com uma cor<strong>da</strong>. Poderão dizer-me que é uma ver<strong>da</strong>deira<br />
infâmia a vi<strong>da</strong> desses velhos e dessas velhas. Não o nego; mas, que importa isso aos meus<br />
loucos? Ou são inteiramente insensíveis à desonra, ou então, quando a sentem, sufocam<br />
facilmente o remorso. Os meus bons e fiéis súditos têm uma filosofia especial, que lhes faz<br />
distinguir muito bem os males imaginários dos males reais. Cai-vos uma pedra na cabeça?<br />
Oh! isso, sim, é na reali<strong>da</strong>de um mal! Mas, a desonra, a infâmia, as censuras, as maldições<br />
só nos fazem mal quando queremos sentir: desde que não pensemos nisso, deixam de ser<br />
um mal. Que mal pode fazer o que murmura a socie<strong>da</strong>de, quando é certo que intimamente<br />
vos aplaudis? Ora, somente eu tenho a virtude de sublimar os homens a esse alto grau de<br />
perfeição, e é esse um dos meus maiores predicados. Parece-me, contudo, ouvir alguns<br />
filósofos dizerem que uma <strong>da</strong>s maiores desgraças para um homem consiste em ficar louco,<br />
em viver no erro, na ilusão e na ignorância. Oh! como estão redon<strong>da</strong>mente enganados!<br />
Respondo-lhes, ao contrário, que é justamente nisso que consiste ser homem. Confesso-vos<br />
que não sei explicar como podem tratar de infelizes os meus loucos, sendo a loucura, como<br />
é, patrimônio universal <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, e quando todos os mortais nascem, educam-se e se<br />
conformam com ela.<br />
Parece-me bastante ridículo lastimar um ser que se acha no seu estado normal.<br />
Considerareis deplorável o fato do homem não ter asas para voar como os pássaros, ou<br />
quatro pés como os quadrúpedes, ou a fronte arma<strong>da</strong> de chifres como o touro? Lamentareis<br />
a sorte de um belo cavalo, pelo fato de não ter aprendido gramática ou de não comer bem?<br />
Deplorareis um touro, pelo fato de não ser adestrado na palestra? Portanto, assim como o<br />
cavalo não é infeliz por ignorar a gramática, assim também não o é o louco, pois a loucura é<br />
natural no homem. Mas, os sutis disputadores meus antagonistas continuam a perseguir-me<br />
com novos sofismas. Dentre todos os animais — dizem eles — só o homem goza do<br />
privilégio de aprender as artes e as ciências, a fim de suprir com os seus conhecimentos às<br />
lacunas <strong>da</strong> natureza. Como se houvesse sombra de ver<strong>da</strong>de em que a natureza, tão<br />
previdente e vigilante quanto ao pernilongo e até quanto às ervas ou às florzinhas do<br />
campo, fosse esquecer-se unicamente do homem, deixando de lhe fornecer tudo aquilo de<br />
que precisa! Oh! que absurdo! Não! As ciências e as artes que tanto decantais não são obra<br />
<strong>da</strong> natureza: foi um certo gênio chamado Teuto (61), grande inimigo do gênero humano,<br />
que, por cúmulo <strong>da</strong> desventura dos homens, as inventou. Eis porque, muito longe de<br />
contribuírem para essa felici<strong>da</strong>de que se pretende apresentar como razão de sua descoberta,<br />
as ciências são, ao contrário, extremamente nocivas. Tinha decerto bom faro aquele sábio e<br />
prudente rei (62) que, com tanta finura, segundo Platão, reprovou a invenção do alfabeto.<br />
Digamos, pois, francamente, que a ciência e a indústria se introduziram no mundo com<br />
to<strong>da</strong>s as outras pestes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana, tendo sido inventa<strong>da</strong>s pelos mesmos espíritos que<br />
deram origem a todos os males, isto é, pelos demônios, que por final tiraram <strong>da</strong> ciência o<br />
seu nome (63). Na<strong>da</strong> disso se conhecia no século de ouro, em que, sem método, sem regra,<br />
sem instrução, os homens viviam felizes, guiados pela natureza e pelo próprio instinto.<br />
Com efeito, que utili<strong>da</strong>de teria, naquele tempo, a gramática? Havia apenas a linguagem, e,<br />
ain<strong>da</strong> assim, só era fala<strong>da</strong> para exprimir o pensamento. Não havia necessi<strong>da</strong>de de lógica,<br />
porque, tendo todos os mesmos raciocínios, as divergências de opinião não provocavam<br />
discussão alguma. Não se conhecia a retórica naquela i<strong>da</strong>de pacífica, em que não havia nem<br />
processos, nem conflitos, nem discursos. Nessa época, os legisladores eram inúteis, porque,