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Elogio da Loucura - CFH

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adulacão. Isto posto, respondei-me: em que consiste o amor próprio? Não consistirá,<br />

porventura, em agra<strong>da</strong>r, em satisfazer, em adular a si mesmo? Pois bem: quando procedeis<br />

dessa forma em relação aos outros, isso se chama adulação. Hoje em dia, tem, essa pobre<br />

adulação a desgraça de estar muito desacredita<strong>da</strong>: mas, por quem? Por to<strong>da</strong>s as pessoas que<br />

se ofendem mais com as palavras do que com os fatos. Acredita-se que a adulação não<br />

possa coadunar-se com a boa fé. Idéia falsa! Pois os próprios animais não nos mostram o<br />

contrário? Em vão se procuraria animal mais cortesão e adulador do que o cão, e, não<br />

obstante, quem pode vangloriar-se de ser mais fiel do que ele? O esquilo domesticado<br />

procura sempre brincar: será ele por isso, menos amigo do homem? Se a adulação<br />

excluísse a boa fé, seria preciso concluir, então, que os ferozes leões, os tigres cruéis e os<br />

irriquietos leopardos devem ser afeiçoados à espécie humana. Não ignoro que há péssima<br />

adulação, <strong>da</strong> qual costumam servir-se as maliciosos e os caçoadores para arrumar e<br />

ridicularizar míseros tolos e vaidosos. Não é essa porém a minha adulação predileta, e<br />

praza a Deus que não a conheça nunca! Provêm a minha <strong>da</strong> doçura, <strong>da</strong> bon<strong>da</strong>de, <strong>da</strong><br />

inteireza de coração, e tanto se avizinha <strong>da</strong> virtude como se distancia de um caráter rude,<br />

insociável e importuno, que, como, diz Horácio desgosta e afasta. A minha adulação<br />

reanima os espíritos abatidos, alegra os melancólicos, estimula os poltrões, desperta os<br />

estúpidos, restabelece os enfermos, acalma os furibundos, forma e mantém os amores. A<br />

minha adulacão incita as crianças ao trabaho e ao estudo, e consola os velhos. Sob o manto<br />

do louvor, censura e instrui os monarcas, sem ultrajá-los. Enfim, minha adulacão faz com<br />

que os homens, como outros tantos Narcisos (76), se apaixonem por si mesmos, <strong>da</strong>ndo<br />

origem à principal felici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Quem já viu ação mais delica<strong>da</strong> e mais grata que a pratica<strong>da</strong> por dois bons e honestos<br />

burros que se coçam mutuamente? É a esse mútuo auxílio que se dirige em grande parte a<br />

eloqüência, muito a medicina e ain<strong>da</strong> mais a poesia. Devo acrescentar que essa adulacão é<br />

o mel, o condimento de to<strong>da</strong> a socie<strong>da</strong>de humana. Dizem os sábios que é um grande mal<br />

estar enganado; eu, ao contrário, sustento que não estar é o maior de todos os males. É uma<br />

grande extravagância querer fazer consistir a felici<strong>da</strong>de do homem na reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s coisas,<br />

quando essa reali<strong>da</strong>de depende exclusivamente <strong>da</strong> opinião que dela se tem. Tudo na vi<strong>da</strong> é<br />

tão obscuro, tão diverso, tão oposto, que não podemos certificar-nos de nenhuma ver<strong>da</strong>de.<br />

Tal era justamente o princípio dos meus acadêmicos, que se mostravam nisso menos<br />

orgulhosos que todos os outros filósofos. Porque, se há ver<strong>da</strong>des que, tendo sido bem<br />

demonstra<strong>da</strong>s, não deixam lugar às dúvi<strong>da</strong>s, quantas não serão — pergunto — as que<br />

perturbam o tranqüili<strong>da</strong>de e os prazeres <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>? Os homens, enfim, querem ser enganados<br />

e estão sempre prontos a deixar o ver<strong>da</strong>deiro para correr atrás do falso. Quereis disso uma<br />

prova sensível e incontrastável? Ide assistir a um sermão, e vereis que, quando o<br />

cacarejador (oh! que injúria! enganei-me, desculpai-me), queria dizer, quando o pregador<br />

abor<strong>da</strong> o assunto com serie<strong>da</strong>de e apoiado em argumentos, o auditório dorme, boceja, tosse,<br />

assoa o nariz, relaxa o corpo, inteiramente enjoado. Se, porém, o orador, como quase<br />

sempre é o caso, conta uma velha fábula ou um milagre <strong>da</strong> len<strong>da</strong>, então o auditório logo se<br />

agita, os dorminhocos despertam, todos os ouvintes levantam a cabeça, arregalam os olhos,<br />

prestam atenção. Nunca observastes que, ao celebrar-se numa igreja a festa de um santo<br />

poético ou romântico — por exemplo, de um São Jorge, de um São Cristóvão, de uma<br />

Santa Bárbara — em geral se costuma consagrar-lhe uma pompa e uma devoção bem<br />

maiores que a que se consagra a São Pedro e São Paulo, e ao próprio Nosso Senhor? Mas,<br />

não é este o lugar apropriado para tal questão.<br />

Voltemos ao nosso assunto. Quanto não custa conquistar a felici<strong>da</strong>de de opinião! Que os

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