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Elogio da Loucura - CFH

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inteiramente o oposto do bem que proporciono aos mortais? Eu os embriago, mas também<br />

lhes tiro a razão. Minha embriaguez é muito diferente <strong>da</strong> de Baco: enche a alma de alegria,<br />

de tripúdio e de delícias, dura até ao fim <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e não custa dinheiro nem dá remorsos.<br />

Os homens me devem ser particularmente gratos, pois não permito que haja entre eles<br />

algum que não sinta mais ou menos os efeitos <strong>da</strong> minha beneficência. Nenhuma <strong>da</strong>s outras<br />

divin<strong>da</strong>des reparte igualmente, entre os mortais, os seus favores. Não cresce por to<strong>da</strong> parte<br />

aquele vinho generoso e saboroso que afasta as aflições importunas e enche até o ânimo<br />

mais melancólico de alegria, de coragem e de esperanças. Vênus raramente concede o dom<br />

<strong>da</strong> beleza; Mercúrio dá a poucos a eloqüência e Hércules é parco dispensador <strong>da</strong>s riquezas;<br />

o homérico Júpiter na cabeça de muito poucos põe a coroa; Marte freqüentemente recusa<br />

aos dois exércitos o seu auxílio; Apolo costuma <strong>da</strong>r respostas desagradáveis aos que<br />

consultam o seu oráculo; o filho de Saturno constantemente lança suas setas; Febo às vezes<br />

man<strong>da</strong> a peste e Netuno mata mais pessoas do que salva. Quanto às horríveis divin<strong>da</strong>des<br />

chama<strong>da</strong>s Vejoves, como seriam Plutão, a Discórdia, o Castigo, a Febre, e outras tantas que<br />

deveriam antes chamar-se carniceiras que divin<strong>da</strong>des, não merecem em absoluto que eu me<br />

dê ao trabalho de lhes fazer alusão.<br />

Portanto, a ver<strong>da</strong>de é que os outros deuses não são bons e benéficos para todos os<br />

mortais, sendo a <strong>Loucura</strong> a única deusa que cumula de favores todo o gênero humano. E o<br />

admirável é que a minha generosi<strong>da</strong>de não é mancha<strong>da</strong> por nenhum interesse. Sou a única<br />

que não exige nem votos nem ofertas. Minha divin<strong>da</strong>de não se ofende nem ordena vitimas<br />

de expiação, quando omiti<strong>da</strong> alguma cerimônia do meu culto. Não ponho em desordem o<br />

céu e a terra para vingar-me de alguém que tendo convi<strong>da</strong>do todos os outros deuses, só a<br />

mim tenha esquecido em casa, deixando-me à margem do odor e <strong>da</strong> fumaça <strong>da</strong>s vítimas<br />

sacrifica<strong>da</strong>s. Para confusão e vergonha dos outros deuses, deverei eu mesma dizer que se<br />

mostram tão incontestáveis e caprichosos que seria um mal absolutamente menor deixá-los<br />

em abandono do que adorá-los. Com eles se deveria fazer o que se costuma praticar com as<br />

pessoas intratáveis e inclina<strong>da</strong>s ao mal, isto é, cortar com eles to<strong>da</strong> correspondência, uma<br />

vez que tão caro é o preço de sua amizade.<br />

E quem acreditaria, agora, que essa minha conduta devesse provocar desprezo? Até<br />

agora, é voz geral, ninguém pensou em prestar à <strong>Loucura</strong> honras divinas; ninguém lhe<br />

consagrou um templo; ninguém a nutriu com vapores <strong>da</strong>s vitimas. Para falar-vos com<br />

franqueza, e creio que já o disse, tamanha ingratidão me causa grande surpresa; mas, pouco<br />

me importa isso e, de acordo com a minha natural facili<strong>da</strong>de, não levo a coisa a mal. Eu<br />

cheiraria à sabedoria e seria indigna de ser <strong>Loucura</strong> se reclamasse essas honras divinas. Que<br />

é que se me ofereceria sobre os altares? Um pouco de incenso, um pouco de farinha, um<br />

bode, um porco. Poderia eu permitir que se degolassem esses inocentes animais para<br />

deleitar-me o olfato? Oh! que ridículas bagatelas! Tenho um culto, sim, um culto que<br />

abrange o mundo inteiro e que todos os mortais me prestam, e os próprios teólogos o<br />

consoli<strong>da</strong>m pelo exemplo. Não tenho a bárbara e cruel ambição de Diana, que vê com<br />

prazer as vítimas humanas, mas creio, ao contrário, ser religiosamente servi<strong>da</strong> e venera<strong>da</strong><br />

quando me vejo esculpi<strong>da</strong> em ca<strong>da</strong> coração e representa<strong>da</strong> pelos costumes e pela conduta.<br />

A propósito de culto, o que os cristãos prestam aos santos consiste quase todo em amálos<br />

e imitá-los. Oh! como são numerosos os que, em pleno meio-dia, acendem velas aos pés<br />

<strong>da</strong> Virgem Mãe de Deus! Mas, não se acha quase nenhum que siga os seus exemplos de<br />

casti<strong>da</strong>de, de modéstia, de zelo pela causa <strong>da</strong> salvação. No entanto, a imitação <strong>da</strong>s suas<br />

virtudes seria o único culto capaz de assegurar o céu aos devotos.<br />

De resto, porque hei de exigir um templo, se possuo um tão vasto e tão belo, que é a

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