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Elogio da Loucura - CFH

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para iludir as horas de aborrecimento: tornaram-se, na boca dos monarcas e dos pregadores,<br />

um meio de tirar proveito <strong>da</strong> crendice popular.<br />

A essa espécie podem agregar-se, a justo título, os ridículos e originais supersticiosos, os<br />

quais, to<strong>da</strong> vez que têm a sorte de ver alguma estátua de madeira ou alguma imagem do seu<br />

polifêmico São Cristóvão (72), ficam convencidos de que nesse dia não poderão morrer.<br />

Sol<strong>da</strong>dos há que, depois de uma pequena prece diante <strong>da</strong> imagem de Santa Bárbara, ficam<br />

certos de que sairão ilesos <strong>da</strong> batalha. Alguns acreditam que, invocando Santo Erasmo em<br />

certos dias, com certas orações e à luz de certas lamparinas, seja possível fazer uma grande<br />

fortuna em pouco tempo (73). E que direi do hercúleo São Jorge, que para esses<br />

supersticiosos faz as vezes de um novo Hipólito (74)? Na ver<strong>da</strong>de, não se pode deixar de rir<br />

diante de sua devoção, que consiste em ornar pomposamente o cavalo do santo e quase que<br />

em prostar-se, diante do animal assim enfeitado, para adorá-lo. Fazem questão absoluta de<br />

conservar o favor e a proteção do cavaleiro por meio de alguma oferta, sendo inviolável<br />

para eles o juramento que fazem pelo seu penacho. Mas, porque não falar dos que julgam<br />

que, em virtude dos perdões e <strong>da</strong>s indulgências, não têm nenhuma dívi<strong>da</strong> para com a<br />

divin<strong>da</strong>de? Com a exatidão de uma clepsidra e <strong>da</strong> mesma maneira por que,<br />

matematicamente, sem recear erro de cálculo, medem os espaços, os séculos, os anos, os<br />

meses, os dias, — assim também, com essa espécie de falazes remissões medem eles as<br />

horas do purgatório. Outra espécie de extravagantes é constituí<strong>da</strong> pelos que, confiando em<br />

certos pequenos sinais exteriores de devoção, em certos palanfrórios, em certas rezas que<br />

algum piedoso impostor inventou para se divertir ou por interesse, estão convencidos de<br />

que irão gozar uma inalterável felici<strong>da</strong>de, conquistar riquezas, obter honras, satisfazer<br />

determinados prazeres, nutrir-se bem, conservar-se sãos, viver longamente e levar uma<br />

velhice robusta. E, como se isso não bastasse, ain<strong>da</strong> esperam poder ocupar no paraíso um<br />

posto elevado, sob a condição, porém, de só passarem ao número dos beatos tão tarde<br />

quanto possível. Pensam, então, chegado o tempo de voar por entre as inefáveis e eternas<br />

delícias do céu, uma vez abandonados pelos bens <strong>da</strong> terra, a que se aferram de todo o<br />

coração.<br />

Persuadidos dos perdões e <strong>da</strong>s indulgências, ao negociante, ao militar, ao juiz, basta<br />

atirarem a uma bandeja uma pequena moe<strong>da</strong>, para ficarem tão limpos e tão puros dos seus<br />

numerosos roubos como quando saíram <strong>da</strong> pia batismal. Tantos falsos juramentos, tantas<br />

impurezas, tantas bebedeiras, tantas brigas, tantos assassínios, tantas imposturas, tantas<br />

perfídias, tantas traições, numa palavra, todos os delitos se redimem com um pouco de<br />

dinheiro, e de tal maneira se redimem que se julga poder voltar a cometer de novo to<strong>da</strong><br />

sorte de más ações. Quem já terá visto homens mais tolos, ou melhor, mais felizes do que<br />

os devotos, os quais julgam que entrarão infalivelmente no reino dos céus, recitando todos<br />

os dias sete versículos, que eu não sei quais sejam, dos salmos sagrados? No entanto, foi<br />

um demônio quem fez tão bela descoberta; mas, um demônio tolo, que tinha mais vai<strong>da</strong>de<br />

do que talento, tanto assim que cometeu a imprudência de exaltar o seu mágico segredo<br />

com São Bernardo (75), que era muito mais esperto do que ele. E to<strong>da</strong>s essas coisas não<br />

serão, talvez, excelentes loucuras? Ah! como isso é ver<strong>da</strong>deiro! Até eu, que sou a <strong>Loucura</strong>,<br />

não posso deixar de sentir vergonha. No entanto, não é o público o único a aprovar tão<br />

completas extravagâncias. Sustentam a sua prática, <strong>da</strong>ndo o exemplo, os próprios<br />

professores de teologia. E, já que viajo por esses mares, convém continuar a navegar.<br />

Digamos, assim, algumas palavras sobre a invocação dos santos. É curioso verificar que<br />

ca<strong>da</strong> país se gaba de ter no céu um protetor, um anjo tutelar, de forma que, num mesmo<br />

povo, entre esses grandes e poderosos senhores <strong>da</strong> corte celeste, se encontrem as diversas

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