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dúvi<strong>da</strong>, o perfeito desprendimento de coração com que deviam entrar na carreira do<br />
apostolado.<br />
É ver<strong>da</strong>de que Jesus Cristo mandou que os apóstolos arranjassem uma espa<strong>da</strong>, mas não<br />
<strong>da</strong>s que servem de instrumento fatal nas mãos dos ladrões e dos parrici<strong>da</strong>s, e sim de uma<br />
espa<strong>da</strong> espiritual que penetrasse até ao fundo do coração, que extirpasse to<strong>da</strong>s as paixões<br />
mun<strong>da</strong>nas, a fim de que só a pie<strong>da</strong>de reinasse e dominasse no ânimo. Observai agora, por<br />
favor, como o nosso célebre Asinus ad lyram esticou o sentido dessa passagem: por espa<strong>da</strong>,<br />
entende ele o direito de defesa contra a perseguição; por alforges, entende a provisão de<br />
víveres, como se o Salvador, tendo percebido que sem essa medi<strong>da</strong> não atenderia bastante<br />
ao esplendor e à digni<strong>da</strong>de dos seu missionários, tivesse mu<strong>da</strong>do de parecer e se retratado<br />
<strong>da</strong> sua determinação.<br />
Não se recor<strong>da</strong>va o nosso legislador <strong>da</strong> sua moral? Pois declarou formalmente aos seus<br />
discípulos que seriam beatos se sofressem pacientemente a infâmia, os ultrajes, os<br />
suplícios; disse-lhes que a ver<strong>da</strong>deira felici<strong>da</strong>de era reserva<strong>da</strong> aos brandos de coração, e não<br />
aos soberbos; exortou-os, enfim, com o exemplo dos pássaros e dos lírios, a se<br />
abandonarem à Providência. Esquecera-se, então, o Salvador dessas suas máximas quando,<br />
por um espírito inteiramente oposto, mandou que os apóstolos trouxessem uma espa<strong>da</strong>,<br />
vendessem o hábito para comprar uma, e preferissem an<strong>da</strong>r nus a an<strong>da</strong>r desarmados? Assim<br />
como o nosso sutil comentador encerra na espa<strong>da</strong> tudo o que pode servir para repelir a<br />
força, assim também entende por alforges tudo o que diz respeito à comodi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
Dessa forma, esse intérprete do espírito de Deus faz com que os apóstolos apareçam no<br />
teatro do mundo, para pregar Jesus crucificado, todos armados de lanças, balistas, fun<strong>da</strong>s e<br />
bombar<strong>da</strong>s. E assim também, para não viajarem em jejum, carrega-os de dinheiro, malas e<br />
embrulhos.<br />
Mas, porque Jesus Cristo, depois de ter man<strong>da</strong>do que os seus discípulos vendessem a<br />
própria camisa (por honesti<strong>da</strong>de, creio que foi só) para comprar uma espa<strong>da</strong>, ordenou em<br />
segui<strong>da</strong>, com ar de severi<strong>da</strong>de e desdém, que a pusessem na bainha? Porque os apóstolos,<br />
ao que saibamos, nunca desembainharam a espa<strong>da</strong> contra a violência dos tiranos? Seriam<br />
obrigados a fazê-lo, em sã consciência, se Cristo expressamente o tivesse determinado. O<br />
nosso teólogo, porém, não se atrapalhou diante dessa dificul<strong>da</strong>de.<br />
Um outro doutor, cujo nome discretamente deixo de citar, deu o mais belo salto do<br />
mundo. O profeta Abacuc disse: “As peles <strong>da</strong> terra de Madian serão revolvi<strong>da</strong>s”. Ora, é<br />
claro como o sol que o profeta quer referir-se às ten<strong>da</strong>s dos mandianitas; mas, firmando-se<br />
o bom teólogo no termo peles, disse que a referi<strong>da</strong> passagem era, sem dúvi<strong>da</strong> alguma, uma<br />
alusão ao esfolamento de São Bartolomeu.<br />
Não faz muito que intervim numa discussão teológica, pois quase nunca falto a esse<br />
gênero de combate. Tendo alguém perguntado como se poderia provar, com as sagra<strong>da</strong>s<br />
escrituras, que contra os herejes deviam ser empregados o ferro e o fogo, em lugar <strong>da</strong><br />
discussão e do raciocínio, logo se levantou um velho, cujo aspecto severo e temerário<br />
facilmente indicava tratar-se de um teólogo, e, franzindo as sobrancelhas, respondeu com<br />
uma voz altisonante: “Foi o próprio São Paulo que fez esta sábia lei: Evita (devita) o herege<br />
depois de uma ou duas admoestações”. Como fosse repetindo muitas vezes e em voz alta<br />
essas palavras, todos o julgaram dominado por um acesso frenético. Mas, ele acabou<br />
explicando o enigma: “Sereis — exclamou — tão ignorantes que não noteis que esse<br />
vocábulo devita (evita), é formado, em latim, pela preposição de, mais o nome substantivo<br />
vita, significando fora <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>? Portanto, São Paulo mandou queimar os hereges e jogar<br />
suas cinzas ao vento”.