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subjetividade do Iluminismo. 4 Mas o fato de o diário moderno não ser<br />
inevitavelmente tão solipsista foi comprovado pelos diários escritos por<br />
mulheres nos anos 70, nos quais a introspecção e a autoconsciência foram<br />
compreendidas como participação individual numa recuperação<br />
histórica coletiva. Consequentemente, as mulheres investiram pesado<br />
na política dos diários, chegando ao ponto em que esta forma aberta, não<br />
hierárquica e impermanente pôde ser proposta como intrinsecamente<br />
feminista, definida em oposição à sua irmã completa, teleologicamente<br />
ordenada, permanente e, portanto, masculina, a autobiografia em si<br />
(como exemplo, ver DUPLESSIS, 1985, p. 141). Nas apropriações cinematográficas<br />
do gênero, sua suposta “feminilidade” foi sugerida na tradição<br />
de filmes envolvendo “autoras” de diários perturbados (sendo todos<br />
eles dirigidos por homens, no entanto): Diário de uma garota perdida<br />
(Das Tagebuch einer Verlorenen, G. W. Pabst, 1929), Segredos de alcova<br />
(Diary of a Chambermaid, Jean Renoir, 1946), Diário de uma camareira<br />
(Le Journal d’une Femme de Chambre, Luis Buñuel, 1965), Quando<br />
nem um amante resolve (Diary of a Mad Housewife, Frank Perry, 1970)<br />
e assim por diante. 5 Conforme as mulheres se tornaram cada vez mais<br />
4 As promessas terapêuticas daquilo que se tornou conhecido como The New Diary (RAINER,<br />
1978) corresponderam à reelaboração dos modelos contemporâneos pós-estruturalistas da construção<br />
do “eu” na linguagem; sua comercialização mais notória costuma ser vista nos workshops e seminários<br />
Intensive Journal do Dr. Ira Pogroff. Ver MALLON, 1984, pp. 87-91. Para o surgimento do diário como<br />
gênero no Iluminismo e suas associações com o autoexame puritano, ver FOTHERGILL, 1974, pp. 11-<br />
37, e NUSSBAUM, 1988, pp. 129-33.<br />
5 Embora fosse uma recriação cinematográfica, O diário de Anne Frank, de George Stevens<br />
(1959) foi adaptado a partir de uma história real. As principais exceções a esta tradição, ou seja,<br />
filmes que apresentam protagonistas masculinos, são Diário de um padre (Journal d`un Curé de Campagne,<br />
Robert Bresson, 1951) e Shinjuku dorobo nikki [Diário de um ladrão Shinjuku], Nagisa Oshima,<br />
1970). Mesmo quando, no caso de Anne Frank, estes são adaptados a partir de diários reais, o<br />
termo “diário” não possui nenhuma força genérica além de indicar uma história pessoal. As principais<br />
exceções são, mais uma vez, Shinjuku dorobo nikki, que, embora tenha como protagonista principal<br />
um homem, emprega a mistura de fantasia, realidade e outras convenções do nikki, forma de diário<br />
feminino comum na literatura japonesa durante a era Heian, e David Holzman’s Diary (Jim McBride,<br />
1967), que, excluída a autocontradição do seu fim, consiste numa imitação sólida de um diário. Estes<br />
e outros filmes-diário fictícios, entre eles Viver a vida [Vivre Sa Vie, 1962], de Godard e Georg, de<br />
Stanton Kaye (1964), são melhor compreendidos em paralelo com romances escritos na forma de<br />
diários; estes foram objeto de pesquisas históricas empreendidas por Abbott (1984) e Martens (1985).<br />
Em março de 1973, o MoMA apresentou uma série de projeções intitulada “O Filme-Diário”, refletindo<br />
uma definição bastante branda do gênero, incluindo não apenas Walden e outros exemplos daquilo que<br />
defendo aqui como verdadeiros filmes-diário, como também diários fictícios (Viver a vida, Diário de um<br />
padre), filmes feitos a partir de diários literários (The Daybooks of <strong>Ed</strong>ward Weston, de Robert Katz) e<br />
exemplos de outras formas de crônica.