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Untitled - Grumo

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grumo / número 02 / octubre 2003<br />

Efeitos de abjeto em João Gilberto Noll e Osvaldo Lamborghini<br />

Paloma Vidal *<br />

Gostaria de indicar neste breve ensaio uma ligação subterrânea entre os contos<br />

"El fiord" (1969) e "El niño proletario" (1973), do escritor argentino Osvaldo<br />

Lamborghini, e o romance A fúria do corpo (1981), do escritor brasileiro João<br />

Gilberto Noll. Se imaginássemos a história da literatura como um terreno sob o<br />

qual se escondem túneis que ligam escritos e épocas, poderíamos dizer que<br />

essas narrativas se cruzam: cultivadas em um solo repressivo e hipócrita, elas<br />

podem ser lidas em diálogo com a prosa política dos anos de ditadura (os<br />

relatos de tortura, os testemunhos de presos e exilados). Subterraneamente lig-<br />

adas também por apostarem na comunhão do abjeto, abrindo novas vias<br />

expressivas para a literatura latino-americana.<br />

Perseguirei aqui a noção de abjeto em toda sua ambigüidade e heterogenei-<br />

dade. O que se entende por abjeto e, mais especificamente, o que se entende<br />

por abjeto nas narrativas em questão? Em primeiro lugar, diria que a prosa de<br />

Lamborghini e de Noll apresentam o abjeto em seu sentido mais imediato,<br />

seu sentido de dicionário: o desprezível, o baixo, o ignóbil. Lemos em "El<br />

niño proletario", conto que gira em torno do encontro macabro entre três<br />

garotos burgueses, Gustavo, Estevão e o narrador, com o menino proletário,<br />

apelidado de Estropiado, que terminará morto por eles:<br />

Com empurrões e chutes, mergulhamos o Estropiado! no fundo de um fosso<br />

de água escassa. Ficou ali, chafurdando de bruços, com a cara manchada de<br />

barro, e. Nosso delírio só fazia aumentar. A cara de Gustavo aparecia con-<br />

traída por um espasmo de agônico prazer. Estevão pegou um pedaço cortante<br />

de vidro triangular. Nós três mergulhamos no fosso. Gustavo, com o braço<br />

erguido, o vidro triangular na sua extremidade, aproximou-se do Estropiado!<br />

e olhou para ele. Eu me aferrava aos meus testículos com medo do meu<br />

próprio prazer, temeroso do meu próprio ululante, agônico prazer. Gustavo<br />

cortou a cara do menino proletário de cima a baixo e depois aprofundou lat-<br />

eralmente os lábios da ferida. (LAMBORGHINI, 1988: 64-65)<br />

Desdobrando a questão, diria que as narrativas de ambos escritores pro-<br />

duzem efeitos de abjeto. A força da narrativa se faz presente na reação do<br />

leitor que tanto pode fechar o livro horrorizado quanto ler ávido até o fim.<br />

A leitura constitui-se de movimentos de repulsa e atração que confirmam os<br />

"poderes do horror", para usar a expressão de Julia Kristeva em seu ensaio<br />

sobre a abjeção. Isto é, o poder de algo que desperta fascinação e desprezo, de<br />

algo que nos une, que nos é absolutamente próximo e, ao mesmo tempo,<br />

repelido como o mais exterior a nós, nosso outro, o animal, como neste tre-<br />

cho de A fúria do corpo:<br />

O trapo que a cobre no sono sujo de sangue, a mão que eu tinha enfiado na<br />

boceta dela toda lambuzada de sangue na frente do espelho arruinado, minha<br />

cara também toda lambuzada, corri a mão pela cara e pelo corpo todo me<br />

lambuzando mais ainda, o sangue pelo corpo todo, você disse parece um<br />

índio todo pintado na frente do espelho, um índio pronto para o ritual da<br />

consagração, eu precisava daquele sangue, meu sangue é teu você disse com<br />

as carnes sobre o trapo sujo de sangue (NOLL, 1997: 36).<br />

Logo se torna evidente que a definição de abjeto escapa no exato momento<br />

em que se fixa. O longo ensaio de Kristeva acompanha essas oscilações.<br />

Definido por ela como "o entre-dois, o ambíguo, o misto" (KRISTEVA,<br />

1983: 12), o abjeto é ora o que determina e delimita o eu, estabelecendo seus<br />

contornos, separando-o do outro, ora é ele próprio o absolutamente outro, o<br />

que se expulsa, expele, evacua. "Há, na abjeção – ela diz nas primeiras linhas<br />

D o s s i e r<br />

]

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