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Untitled - Grumo

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grumo / número 01 / marzo 2003<br />

Efeitos de abjeto em João Gilberto Noll e Osvaldo Lamborghini<br />

um espaço em branco. Era um espaço em branco. Era um espaço em bran-<br />

co" (IDEM: 68), repete o narrador. Ou como neste trecho de "El fiord", logo<br />

depois do nascimento do tão esperado bebê de Carla Greta Terón. O relato<br />

diz e faz simultaneamente: rasga, mutila, deforma, borrando fronteiras e<br />

criando novas relações:<br />

A baba pegajosa que fluía da minha boca molhava meu corpo. Rasguei, no<br />

entanto, todos os tapetes ao meu alcance. Por traição, claro que por traição.<br />

Mutilei as bordadas cenas do bem e do mal, deformei seu sentido, mordi<br />

algumas com meus dentes banguelas. Por traição. Escorria um caldinho ado-<br />

cicado, nojento e de lamber os beiços e com sabor adocicado. Por traição. E<br />

todos estávamos modificados pela presença do imodificável Atílio Tancredo<br />

Vacán. Pulei em todas as direções: uma nova relação. Homem com homem<br />

homem com homens homens homens. (IDEM: 24-25)<br />

Os efeitos de abjeto são um modo de comunicação com o leitor, como indi-<br />

ca George Bataille em A literatura e o mal. "A comunicação é o contrário da<br />

coisa, que se define pelo isolamento" (BATAILLE, 2000: 139), afirma o críti-<br />

co. A coisa, nesse caso, é o que transcende a matéria, o ideal, a coisa em si.<br />

Bataille insiste em que a comunicação é material, ou seja, se dá no domínio<br />

da matéria e não das elevações do espírito. É da comunicação pela matéria<br />

que se trata nas narrativas de Lamborghini e Noll. Nenhum dos dois sofre do<br />

que Bataille chamou de complexo de Ícaro. Ambos preferem a lama ao vôo.<br />

Em uma entrevista de 1997, Noll afirma que o romance deve "mexer com as<br />

forças elementares do sexo, as forças do corpo, reverenciar essas materiali-<br />

dades" (NOLL, 1997b: 89), e é isso que ele faz em A fúria do corpo:<br />

Quando a gente se encontrava você dizia meu coração tá doendo, toca aqui.<br />

Eu tocava no coração com a mão espalmada sobre teu peito e sentia o coração<br />

responder: pulsava ali uma outra vida que não a minha, um outro ser vivo no<br />

mistério mas tão mineral que eu podia tocar, alisar na minha ternura, aper-<br />

tar com o ódio de quem possui o que não é seu e que no entanto se dá. Um<br />

coração apaixonado. O coração pulsava feito uma pomba na mão, batia con-<br />

tra o meu tato todo cheio da fantasia madura, prestes a ser mordida: eu mor-<br />

dia o seio que guardava o coração você me dizia vem, e em cada convite mais<br />

uma curva do labirinto se desenhava; eu enfrentava mais uma curva e me per-<br />

dia mais uma vez ao teu encontro. E cada encontro nos lembrava que o único<br />

roteiro é o corpo. O corpo. (NOLL, 1997: 35)<br />

Bataille refere-se, também em A literatura e o mal, a uma "subjetividade<br />

comum" – assim como Noll fala de um eu do mundo, "essa cápsula que em<br />

raros momentos consegue uma fusão" (NOLL, 2002). A subjetividade é<br />

tanto comum, no sentido do que se comparte, como impenetrável. Em out-<br />

ras palavras, sua impenetrabilidade é comum a todos. A comunicação só se<br />

dá, portanto, como apelo a uma igualdade no anonimato. Diz o narrador de<br />

A fúria do corpo: "não poderei vos doar portanto alegria mas só o anonima-<br />

to mais vil se bem que anunciador de que alguma coisa cresce em mim, em<br />

nós, e nos toma, nos restitui ao esplendor mais humano" (NOLL, 1997: 27).<br />

A comunicação está no domínio da derrota, assinala Bataille, por constituir-<br />

se de uma ininteligibilidade irredutível que é próprio do subjetivo, em<br />

oposição à clareza e à distinção da coisa. Ela é mais forte quando se admite<br />

vã, pois é enquanto vã que ela pode admitir sua própria existência. Quando<br />

a ininteligibilidade se torna patente, irremediável, incontornável, estamos<br />

diante do escândalo, diz Bataille. O escândalo é a existência do mundo obje-<br />

tivo, do qual fazemos parte e, ao mesmo tempo, nos destacamos. O momen-<br />

to escandaloso é o instante da comunicação soberana, na expressão de<br />

Bataille, comunicação ligada ao interdito, fundada pela cumplicidade no<br />

conhecimento do mal, em seu desejo de liberdade. "Literatura é um exercí-<br />

cio desejante", diz Noll (NOLL, 2002). Quando esse desejo se transmite<br />

anonimamente, em vez de se deixa tomar individualmente, para o proveito<br />

solitário, dá-se a comunicação soberana.<br />

1 3 4]<br />

Há no abjeto uma indistinção entre o profano e o sagrado que pode se dar<br />

como sublimação, buscando representar o abjeto para purgá-lo, como assi-<br />

nala Kristeva, ou como exaltação da matéria, do corpo, uma purificação –<br />

Noll o afirma explicitamente – não enquanto transcendência, mas enquanto<br />

acesso a uma dimensão elementar e imanente da existência, em uma espécie<br />

D o s s i e r

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