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Untitled - Grumo

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[1 7 5<br />

Reivindicar é sofrer. Não lembramos, não pensamos, não reivindicamos.<br />

Inútil: sofremos.<br />

Só então me dei conta do meu excesso de cuidado para atravessar as ruas.<br />

Não confio em sinais de trânsito nem em faixas de pedestres. Nos tumultos<br />

das ruas, dos ônibus e dos vagões de metrô, puxo minha bolsa e me certifico<br />

de que continua fechada, que ninguém a abriu e levou minha carteira. De<br />

noite, tiro correndo a chave da bolsa e abro a porta discreta e rapidamente,<br />

olhando ao meu redor pra ver se nenhuma figura suspeita vai me render e<br />

entrar em casa comigo.<br />

Tenho medo.<br />

Medo das pessoas.<br />

Estranho ver senhoras e senhores de classe média andando de ônibus para<br />

todos os lados. Podiam ser minha mãe, meu tio, minha avó. No Rio, cada<br />

um tem seu carro, ou anda de táxi. Evitamos os ônibus. São perigosos, sujos,<br />

mal freqüentados e mal dirigidos. Em Buenos Aires anda-se a pé, sozinha –<br />

uma mulher! – e de ônibus, de noite, de madrugada. Que liberdade! As por-<br />

tarias dos edifícios são de vidro, não têm grades e nem porteiros.<br />

Nossas praças são gradeadas.<br />

Nossas praças são gradeadas.<br />

Nosso espaço público é cercado. Nossas casas parecem prisões. Temos grades<br />

nas janelas não só de andar térreo, mas de primeiro andar!<br />

Pulamos mendigos, dezenas por dia. Derreto dentro do carro, em cada sinal<br />

de trânsito, para evitar os mutilados, as crianças-mendigas e pivetes. Não vejo<br />

mais as dezenas de trapos humanos, de cor cinza, imundos, fedorentos, semi-<br />

nus, que povoam nossas ruas, que dormem e criam seus filhos nas portas de<br />

C r ó n i c a s<br />

nossas casas. Tornaram-se invisíveis.<br />

Mas também não é assim: a vida segue, normal, a gente se acostuma a tudo.<br />

Não deixo de sair por medo: rezo. Não vejo os mendigos, fecho os vidros do<br />

carro, travo a porta e pago um seguro anti-furto. Para sair na rua: rezo. Para<br />

atravessar as ruas, tenho muita cautela. Passo longe das favelas e para não<br />

levar uma bala perdida, rezo. Mesmo não acreditando em Deus. Mesmo não<br />

tendo fé. Rezo e ainda agradeço por ser brasileira. Carioca.<br />

Amanhã volto pro Rio. Cidade Maravilhosa.<br />

PS: A Argentina está na merda. Pensando bem, sempre esteve.<br />

O Brasil está na merda. Sempre esteve.<br />

Os gringos têm razão: a capital do Brasil é Buenos Aires. É tudo a mesma<br />

merda.<br />

PS 2: Ver uma peça como "Los Murmullos", extremamente agressiva e vio-<br />

lenta, fez doer minha alma brasileira. Cada golpe na Argentina me doía no<br />

Brasil. Dói nossa desgraça comum. Vontade de estender a mão e oferecer<br />

ajuda. Patético: cego guiando cego.<br />

As palavras secas e cortantes sangrando também em verde-amarelo. Doeu a<br />

falta de memória brasileira. A falta de crítica. A ausência do assunto. Doeu<br />

nossa miséria. Doeu nossas histórias tristes e macabras. Doeu o meu samba,<br />

meu povo dócil, estupidamente alegre. Doeu a falta de amargura. Doeu o<br />

vazio do mundo pós-utópico, pós-ditadura, pós-tudo e sem-vergonha.<br />

Doeram nossas semelhanças: a irresponsabilidade de nossas classes dirigentes,<br />

nossos povos fodidos, nossas crianças sem futuro, educação nem dentes, nos-

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