Untitled - Grumo
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Reivindicar é sofrer. Não lembramos, não pensamos, não reivindicamos.<br />
Inútil: sofremos.<br />
Só então me dei conta do meu excesso de cuidado para atravessar as ruas.<br />
Não confio em sinais de trânsito nem em faixas de pedestres. Nos tumultos<br />
das ruas, dos ônibus e dos vagões de metrô, puxo minha bolsa e me certifico<br />
de que continua fechada, que ninguém a abriu e levou minha carteira. De<br />
noite, tiro correndo a chave da bolsa e abro a porta discreta e rapidamente,<br />
olhando ao meu redor pra ver se nenhuma figura suspeita vai me render e<br />
entrar em casa comigo.<br />
Tenho medo.<br />
Medo das pessoas.<br />
Estranho ver senhoras e senhores de classe média andando de ônibus para<br />
todos os lados. Podiam ser minha mãe, meu tio, minha avó. No Rio, cada<br />
um tem seu carro, ou anda de táxi. Evitamos os ônibus. São perigosos, sujos,<br />
mal freqüentados e mal dirigidos. Em Buenos Aires anda-se a pé, sozinha –<br />
uma mulher! – e de ônibus, de noite, de madrugada. Que liberdade! As por-<br />
tarias dos edifícios são de vidro, não têm grades e nem porteiros.<br />
Nossas praças são gradeadas.<br />
Nossas praças são gradeadas.<br />
Nosso espaço público é cercado. Nossas casas parecem prisões. Temos grades<br />
nas janelas não só de andar térreo, mas de primeiro andar!<br />
Pulamos mendigos, dezenas por dia. Derreto dentro do carro, em cada sinal<br />
de trânsito, para evitar os mutilados, as crianças-mendigas e pivetes. Não vejo<br />
mais as dezenas de trapos humanos, de cor cinza, imundos, fedorentos, semi-<br />
nus, que povoam nossas ruas, que dormem e criam seus filhos nas portas de<br />
C r ó n i c a s<br />
nossas casas. Tornaram-se invisíveis.<br />
Mas também não é assim: a vida segue, normal, a gente se acostuma a tudo.<br />
Não deixo de sair por medo: rezo. Não vejo os mendigos, fecho os vidros do<br />
carro, travo a porta e pago um seguro anti-furto. Para sair na rua: rezo. Para<br />
atravessar as ruas, tenho muita cautela. Passo longe das favelas e para não<br />
levar uma bala perdida, rezo. Mesmo não acreditando em Deus. Mesmo não<br />
tendo fé. Rezo e ainda agradeço por ser brasileira. Carioca.<br />
Amanhã volto pro Rio. Cidade Maravilhosa.<br />
PS: A Argentina está na merda. Pensando bem, sempre esteve.<br />
O Brasil está na merda. Sempre esteve.<br />
Os gringos têm razão: a capital do Brasil é Buenos Aires. É tudo a mesma<br />
merda.<br />
PS 2: Ver uma peça como "Los Murmullos", extremamente agressiva e vio-<br />
lenta, fez doer minha alma brasileira. Cada golpe na Argentina me doía no<br />
Brasil. Dói nossa desgraça comum. Vontade de estender a mão e oferecer<br />
ajuda. Patético: cego guiando cego.<br />
As palavras secas e cortantes sangrando também em verde-amarelo. Doeu a<br />
falta de memória brasileira. A falta de crítica. A ausência do assunto. Doeu<br />
nossa miséria. Doeu nossas histórias tristes e macabras. Doeu o meu samba,<br />
meu povo dócil, estupidamente alegre. Doeu a falta de amargura. Doeu o<br />
vazio do mundo pós-utópico, pós-ditadura, pós-tudo e sem-vergonha.<br />
Doeram nossas semelhanças: a irresponsabilidade de nossas classes dirigentes,<br />
nossos povos fodidos, nossas crianças sem futuro, educação nem dentes, nos-