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Revista n.° 34 - APPOA

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Um monstro no ninho<br />

“Uma nova pessoa que entrou na sua casa<br />

sem vir de fora 2 ”.<br />

Em meados do século XX um novo monstro ganha terreno: o filho. Não está<br />

vamos em falta de figuras para o horror; ao contrário, nossa fantasia demonstra<br />

extrema criatividade em fabricar monstros. Qualquer novidade se incorpora<br />

ao nosso vasto bestiário fantástico, tanto que temos monstros de todos os<br />

tipos, encarnando todas as formas do medo, do horror, do inimaginável. Mas<br />

colocar as crianças, e principalmente as próprias, como monstros, é realmente<br />

uma novidade.<br />

A primeira metade desse século, convulsionado pelos massacres de duas<br />

guerras mundiais, mostrou o quanto somos capazes da destruição em massa,<br />

do caos, sem auxílios mágicos, sobrenaturais ou divinos. O mal foi<br />

dessacralizado, ele está entre nós. Foi em ventres humanos que se geraram os<br />

monstros que hoje nos assombram, e descobrimos quão longe podemos chegar.<br />

As crianças, os filhos, são caixinhas de surpresas: Curie, Einstein e Fleming<br />

foram filhos de alguém, mas Hitler, Mussolini e Stalin também!<br />

Representações de crianças como sendo um problema, um incômodo,<br />

ou ainda como malditas, não são fenômeno contemporâneo. Porém, as histórias<br />

clássicas foram arranjando suas particulares maneiras de mascarar essas<br />

intenções, de suavizar o ataque. De forma velada, simbólica, como nos sonhos,<br />

os contos de fadas narram vinganças dos grandes contra os pequenos, principalmente<br />

contra sua gula e o fardo de prover-lhes sustento. Aparecem como<br />

descartáveis comilões em João e Maria, em que são colocados como indignos<br />

de dividir o alimento com os pais, e acabam pagando caro pela voracidade de<br />

devorar até as paredes da casa de doces.<br />

Em O flautista de Hamelin, o pedido da comunidade para livrar-se dos<br />

ratos pode ser lido como metafórico, pois as crianças também podem ser incômodas,<br />

parasitas, inúteis. Não é por acaso então que o Flautista as leva embora<br />

pelo mesmo caminho trilhado antes pelos ratos. Estabelecendo uma equivalência<br />

simbólica, elas seriam nossos “ratinhos de estimação”.<br />

2 Citação de Colette Audry, apud Beauvoir, Simone. O segundo sexo: a experiência vivida. São<br />

Paulo: Difusão Européia do livro, 1960, p. 275. Beauvoir refere-se ao estado de espírito da mãe<br />

com as seguintes palavras: “Durante a gravidez só lhes cabia entregarem-se a sua carne;<br />

nenhuma iniciativa era exigida. Agora há em face delas uma pessoa com direito sobre elas [...]<br />

Ele inflige-lhes uma dura servidão e não faz mais parte delas: apresenta-se como um tirano; elas<br />

olham com hostilidade esse pequeno indivíduo estranho a elas e que constitui uma ameaça à<br />

carne, à liberdade, ao seu eu inteiro”.<br />

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