Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Um monstro no ninho<br />
“Uma nova pessoa que entrou na sua casa<br />
sem vir de fora 2 ”.<br />
Em meados do século XX um novo monstro ganha terreno: o filho. Não está<br />
vamos em falta de figuras para o horror; ao contrário, nossa fantasia demonstra<br />
extrema criatividade em fabricar monstros. Qualquer novidade se incorpora<br />
ao nosso vasto bestiário fantástico, tanto que temos monstros de todos os<br />
tipos, encarnando todas as formas do medo, do horror, do inimaginável. Mas<br />
colocar as crianças, e principalmente as próprias, como monstros, é realmente<br />
uma novidade.<br />
A primeira metade desse século, convulsionado pelos massacres de duas<br />
guerras mundiais, mostrou o quanto somos capazes da destruição em massa,<br />
do caos, sem auxílios mágicos, sobrenaturais ou divinos. O mal foi<br />
dessacralizado, ele está entre nós. Foi em ventres humanos que se geraram os<br />
monstros que hoje nos assombram, e descobrimos quão longe podemos chegar.<br />
As crianças, os filhos, são caixinhas de surpresas: Curie, Einstein e Fleming<br />
foram filhos de alguém, mas Hitler, Mussolini e Stalin também!<br />
Representações de crianças como sendo um problema, um incômodo,<br />
ou ainda como malditas, não são fenômeno contemporâneo. Porém, as histórias<br />
clássicas foram arranjando suas particulares maneiras de mascarar essas<br />
intenções, de suavizar o ataque. De forma velada, simbólica, como nos sonhos,<br />
os contos de fadas narram vinganças dos grandes contra os pequenos, principalmente<br />
contra sua gula e o fardo de prover-lhes sustento. Aparecem como<br />
descartáveis comilões em João e Maria, em que são colocados como indignos<br />
de dividir o alimento com os pais, e acabam pagando caro pela voracidade de<br />
devorar até as paredes da casa de doces.<br />
Em O flautista de Hamelin, o pedido da comunidade para livrar-se dos<br />
ratos pode ser lido como metafórico, pois as crianças também podem ser incômodas,<br />
parasitas, inúteis. Não é por acaso então que o Flautista as leva embora<br />
pelo mesmo caminho trilhado antes pelos ratos. Estabelecendo uma equivalência<br />
simbólica, elas seriam nossos “ratinhos de estimação”.<br />
2 Citação de Colette Audry, apud Beauvoir, Simone. O segundo sexo: a experiência vivida. São<br />
Paulo: Difusão Européia do livro, 1960, p. 275. Beauvoir refere-se ao estado de espírito da mãe<br />
com as seguintes palavras: “Durante a gravidez só lhes cabia entregarem-se a sua carne;<br />
nenhuma iniciativa era exigida. Agora há em face delas uma pessoa com direito sobre elas [...]<br />
Ele inflige-lhes uma dura servidão e não faz mais parte delas: apresenta-se como um tirano; elas<br />
olham com hostilidade esse pequeno indivíduo estranho a elas e que constitui uma ameaça à<br />
carne, à liberdade, ao seu eu inteiro”.<br />
67