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Criação contemporânea e angústia<br />
Ou seja, se a Esfinge esqueceu a pergunta, o lugar do Outro está esvaziado<br />
como lugar do saber, e cabe a cada um se virar como puder na relação<br />
imaginária com seu semelhante num mundo em que está valendo tudo. Vivemos<br />
na era do vale-tudo. Se há lei, o indivíduo decide se ela está valendo ou não,<br />
o que quer dizer que quem faz a lei é cada um. Cabe avisar: o que tem aparência<br />
de liberdade individual é expressão máxima de tirania do gozo do Outro: as<br />
imagens se multiplicam ao infinito, sem que o sujeito possa identificar qual<br />
delas lhe diz respeito, assim como o retorno do real se dá de maneira traumática,<br />
pois carece de referências simbólicas que o delimitem.<br />
O esvaziamento do lugar simbólico do Outro promove seu retorno traumático<br />
no real e na inflação do imaginário, que se multiplica nos objetos de consumo<br />
propostos no mercado do espetáculo. A sociedade do espetáculo promove o<br />
deslocamento do ser para o ter e do ter para o parecer (Debord, 2000). Em<br />
nosso meio, a máxima que expressa isso é que não basta ser honesto, é preciso<br />
parecer honesto.<br />
A pulverização das grandes narrativas, que preenchiam o lugar vazio do<br />
Outro com uma organização simbólica e imaginária de suposição de saber o<br />
que era melhor para as vidas das pessoas, promove a “prevalência de um diálogo<br />
horizontal com o semelhante, mas sem dar maior atenção e sem ter maior<br />
interesse pelas mensagens que poderiam vir do Outro” (Melman, 2003, p.54).<br />
Na medida em que o lugar do Outro fica esvaziado das narrativas que<br />
organizavam o laço social, ocorrem certos efeitos sintomáticos. Esvaziado das<br />
grandes narrativas, o lugar do simbólico no Outro deixa exposta, demasiadamente<br />
exposta, sua borda real e imaginária. Esses efeitos são captados em<br />
primeira mão pelos poetas, escritores e artistas. São captados também, na sua<br />
versão nua e crua, na violência, como foi o caso das Gordon Riots. Não nos<br />
faltam exemplos de explosões de violência no real do corpo.<br />
Outra característica contemporânea decorre do discurso da tecnociência,<br />
que tem como ideal tamponar a falta, reduzindo o impossível a um por enquanto.<br />
Isso surge na fala cotidiana, quando se diz que fazemos apenas o possível, que<br />
o impossível demora um pouco mais. A tecnociência promete tornar possível<br />
amanhã o impossível de hoje. O ideal desse discurso é fazer a falta faltar, obturar<br />
a falta no Outro. O Outro em questão nesse discurso é sígnico, deixa de ser<br />
tesouro do significante para ser lugar do código, em que um signo representa<br />
algo para alguém, de preferência sem margem para mal-entendidos.<br />
Creio que é nos desdobramentos desse contexto, já chamado de pósmoderno<br />
por muitos autores, que podemos situar a obra de Vera Chaves Barcellos,<br />
artista representativa da arte contemporânea brasileira. De que forma sua criação<br />
espelha a angústia contemporânea?<br />
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