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Criação contemporânea e angústia<br />
A terceira obra de Vera Chaves Barcellos que destacaremos se chama<br />
Não à guerra (No a la guerra) (fig. 5). Nesse trabalho, aparece em primeiro plano<br />
a figura do rosto da artista sendo esbofeteado de um lado para o outro por uma<br />
mão invisível, e como pano de fundo, entre um golpe e outro, se podem ver<br />
imagens da guerra do Iraque. As imagens, trazendo cenas do cotidiano da guerra,<br />
são como aquelas que podemos ver cotidianamente nas telas dos noticiários.<br />
São cenas de atrocidades apresentadas de forma banalizada, como se<br />
nada fossem, sem tempo nem chance de um mínimo de repercussão no espectador,<br />
pois imediatamente somos bombardeados com novas imagens que nada<br />
têm a ver com as exibidas anteriormente. A única exceção a esse procedimento<br />
de banalização do mal e do sofrimento nas redes de televisão se dá quando<br />
alguém, cidadão digno de respeito, sofre um ato de violência por parte de algum<br />
“elemento”, e é dado o espaço e alguma reflexão sobre o sofrimento que o ato<br />
de violência sofrido causou na vítima, com a qual nos identificamos, como se<br />
nada tivéssemos a ver com o contexto violento que gerou o ato de violência em<br />
primeiro lugar.<br />
Para Lacan ([1964] 1979), o real pode ser definido em termos de trauma,<br />
no sentido de que quando o real transpassa a tela-imagem, ele tem efeito traumático<br />
para o sujeito. O traumático é o encontro faltoso com o real. É faltoso<br />
porque o real não pode ser representado, apenas recoberto pelo véu das imagens<br />
formadas na tela e delimitado pelos significantes, que podem significar a<br />
falta. Nesse sentido, a repetição é a tentativa do sujeito de recompor a tela que<br />
delimite o furo com o significante e estenda sobre o real um quadro, véu imaginário<br />
que o oculte, deixando apenas entrever seu rastro, como no fantasma.<br />
Entretanto, a repetição, enquanto encontro traumático com o real, resiste ao<br />
simbólico, pois não é nem significante, nem imagem.<br />
No encontro traumático com o real há uma realização da cena de horror<br />
do fantasma. Isso quer dizer que “o horror está no fundo de todo desejo. O horror<br />
ocorre quando o objeto a salta aos olhos. Nesse momento, o sujeito desvanece,<br />
há uma afânise do sujeito, ele não pode pensar em mais nada, está na pura<br />
experimentação deste horror” (Melman, 2003, p.73).<br />
Quando o real da violência é banalizado pelas imagens cirurgicamente<br />
descontextualizadas e pasteurizadas, acabamos não vendo mais o horror.<br />
Habituamo-nos a ele, e é necessária sempre uma dose maior de horror para<br />
senti-lo. Entretanto, seu efeito traumático se torna velado e seu retorno sobre o<br />
sujeito se dá de forma insuspeitada. Tanto pode retornar, por exemplo, incidindo<br />
sobre as relações paranóicas com o semelhante, visto com suspeita como um<br />
potencial agressor – as pessoas andam com medo pelas ruas, sem saberem<br />
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