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Um monstro no ninho<br />
do. Paradoxalmente, nesse caso a tentação não veio da ruptura, da curiosidade<br />
e irreverência que sempre tornaram as mulheres tão perigosas. A tentação que<br />
provocou a expulsão de Eva veio do passado: desempenhar o mais tradicional<br />
papel feminino, a maternidade.<br />
Não somos nós, é ela própria que se coloca na linhagem das mães de<br />
monstros, de que aqui nos ocupamos, ao descrever sua gestação assim: “Já<br />
reparou quantos filmes retratam a gravidez como uma infestação, uma colonização<br />
sub-reptícia? O Bebê de Rosemary foi só o começo. Em Alien um extraterrestre<br />
nojento sai da barriga de John Hurt (p. 71). Durante todo o tempo em que<br />
estive grávida de Kevin, combati a idéia de Kevin, a noção de que eu havia sido<br />
rebaixada de motorista a veículo, de proprietária a imóvel em si” (p. 76).<br />
Uma vez nascido, o bebê Kevin foi visto pela mãe como possuindo uma<br />
personalidade própria, preexistente e destinada a se desencontrar com a dela.<br />
Ao contrário do marido, que esperava um filho genérico, tendo um papel<br />
preestabelecido para qualquer um que nascesse, para Eva não havia lugar nem<br />
para o feto idealizado. Desde o começo estabeleceu-se um duelo de subjetividades,<br />
uma tensão entre diferentes. Ele rejeitava seu leite, cujo sabor não suportava,<br />
sequer na mamadeira, que tomava exclusivamente no colo do pai, chorava<br />
de forma incessante, alheio ao conforto de seus braços. As intermináveis gritarias<br />
de cólica pareciam ser exclusivamente para sua mãe, pois cessavam no<br />
instante em que o pai entrava em casa, e Eva via nisso uma intencionalidade<br />
maligna contra ela.<br />
Na primeira infância, Kevin negou-se a falar o quanto pôde, embora a mãe<br />
suspeitasse de que ele estava apto para fazê-lo, e obrigou-a a lhe trocar fraldas<br />
até os seis anos, num descontrole esfincteriano que ela compreendia como<br />
mais uma forma de controlá-la, uma disposição do filho de obrigá-la a viver entre<br />
as fezes. Com o pai mantinha uma relação apagada, blasé; com a mãe, de<br />
cotidiana tortura. A cumplicidade entre mãe e filho, na qual só ela parecia perceber<br />
a sordidez do espírito de seu pequeno monstro, só fez aumentar. O pai<br />
surpreende-se com as queixas da esposa; para ele, Kevin era absolutamente<br />
normal, mas ela tinha certeza de que isso era assim para que ela passasse por<br />
louca.<br />
A vida segue, as babás se demitem sucessivamente, os amigos o evitam,<br />
os professores o acham bizarro, e ele se isola. O menino é diabólico a<br />
ponto de jamais ser pilhado; nunca é punido e faz a todos de bobos, principalmente<br />
o pai, que nunca vê o que não quer ver. A demonstração de sua perversidade<br />
só veio a se comprovar com o desenlace do massacre final.<br />
Após o banho de sangue, Eva e Kevin terminam vivendo um para o outro,<br />
continuando sua simbiose às avessas, dedicando-se e odiando-se mútua e in-<br />
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