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Um monstro no ninho<br />
Em seu clássico texto sobre o Estádio do espelho como formador da<br />
função do eu, de 1949, Lacan lembra como os bebês humanos ficam fascinados<br />
pela sua imagem do espelho exatamente no ponto em que os animais se<br />
desinteressam dela, quando descobrem que se trata deles mesmos, que não<br />
há outro espécime ali. Nós nos compreendemos como sendo “um”, justamente<br />
quando nos vemos como “outro”, ou seja, quando nos vemos vistos de fora. Foi<br />
isso que levou o psicanalista Winnicott (1975) a colocar o olhar da mãe como<br />
esse espelho no qual a criança se vê para se crer.<br />
Para ampliar essa compreensão, convém observar o fenômeno da<br />
transitividade, descrito por Lacan, característico das crianças bem pequenas,<br />
que batem no amiguinho e choram como se tivessem apanhado, confundindose<br />
com ele. São as mesmas que disputam a mordidas e beliscões o brinquedo<br />
na pracinha, como se a diferença existente entre a criança que possui o balde<br />
de areia e outra que não o possui fosse insuportável e fascinante. Esses percalços<br />
cômicos da primeira infância ajudam-nos a compreender que a separação<br />
entre a imagem de si e as várias versões especulares de sua duplicação (nas<br />
outras crianças, nos irmãos, no olhar da mãe) são uma forma rudimentar de<br />
estar no mundo 22 . Não seria de estranhar, portanto, que essas experiências<br />
deixassem rastros na fantasia dos que já cresceram.<br />
O filho é uma duplicação de nosso ser de criança, ele desperta os restos<br />
adormecidos do passado, de tal forma que desde sua condição fetal já levará<br />
sua mãe a vivenciar a reprodução da própria infância. A partir do momento em<br />
que a gestante começa a colecionar os objetos que lhe serão úteis após o<br />
nascimento, como fraldas, roupas minúsculas, mamadeiras, ela sabe que voltará<br />
a envolver-se maciçamente com velhos temas, como a sucção e os dejetos.<br />
Mesmo que de forma inconsciente, lembrará do quanto um filho é egoísta, que<br />
ele ocupa a vida da mãe de forma totalitária, assim como ela própria havia feito<br />
com a sua. Identifica-se então duplamente, com a mãe que está se tornando e<br />
com a cria despótica que foi, e talvez não haja lugar para os dois neste mundo.<br />
22 “[...] é numa identificação com o outro como vive toda a gama das reações de prestância e de<br />
ostentação, das quais sua conduta revela com evidência a ambivalência estrutural, escravo<br />
identificado com o déspota, ator com o espectador, seduzido com o sedutor. Essa relação<br />
erótica na qual o indivíduo humano fixa-se numa imagem que o aliena de si mesmo, tal é a energia<br />
e tal é a forma onde se origina essa organização passional a que chamará seu ‘eu’. Essa forma<br />
se cristalizará efetivamente na tensão conflitiva interna ao sujeito, que determinará o despertar<br />
de seu desejo pelo objeto de desejo do outro”. Lacan, Jacques. La agresividad en psicoanalisis.<br />
In: ___. Escritos. Siglo Veintiuno Editores. p. 106.<br />
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