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Um monstro no ninho<br />
Encarnar esse duplo, servir de fachada para nossas fantasias inadmissíveis,<br />
como a de rejeitar o próprio filho, é uma das utilidades do demônio. Quando<br />
uma mulher corta a linhagem, opondo-se à maternidade ou questionando-a, é o<br />
filho demoníaco que mata todo o grupo familiar; novamente ele se incumbe,<br />
enquanto duplo, dos “crimes” dela.<br />
Kevin, um demônio demasiado humano<br />
Para a psicanalista Helene Deutsch (1960), há diferentes tipos de maternidade,<br />
que ela divide basicamente em dois grupos:<br />
“um tipo é a mulher que desperta para uma nova vida através de<br />
seu filho, sem ter o sentimento de uma perda. Tais mulheres desenvolvem<br />
seus encantos e sua beleza somente depois do nascimento<br />
de seu primeiro filho; o outro tipo é a mulher que desde o<br />
princípio sente uma espécie de despersonalização na relação com<br />
seu filho; tais mulheres dedicam seus afetos a outros valores (erotismo,<br />
arte ou aspirações masculinas) ou esse afeto é demasiado<br />
pobre ou ambivalente em sua origem e não pode tolerar uma nova<br />
carga emotiva; o primeiro tipo estende seu eu através da criança, o<br />
segundo sente-se limitado e empobrecido” (p.59).<br />
Datado de 1944, o livro de Deutsch encontra ainda as mulheres em papéis<br />
sociais mais rígidos. Hoje, os dois tipos que ela teoriza convivem em cada<br />
mulher, junto com todas as nuances intermediárias entre eles. Em um livro<br />
chamado Precisamos falar sobre o Kevin, de Lionel Shriver 23 , uma escritora<br />
norte-americana, a literatura produziu um exemplo do que seria o segundo tipo<br />
de mulher. Nesse livro vamos encontrar a mesma trama de estranhamento anteriormente<br />
discutida, mas sem o apelo do demoníaco.<br />
Aqui estamos, sem máscaras religiosas ou fantásticas, face a face com<br />
as fantasias mais monstruosas encenadas por gente comum. Justamente, essa<br />
novela assusta por evocar “a vida como ela é”. É uma história ficcional, narrada<br />
pela mãe de um “garoto columbine”, como ficaram chamados os meninos as-<br />
23 Shriver, Lionel. Precisamos falar sobre Kevin. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2007.<br />
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