Angústia e morte... trata-se de altares e oferendas em homenagem a algum morto, de sustentar a não-elaboração da perda, que sustenta a possibilidade de que algo sobreviva. Nessa perspectiva, tem função de resto, de algo que sobrevive e que regressa, como a cepa bacteriana. Em outras palavras, algo sempre permanece fora do encontro com o significante, que tem essa função de resto, que é da ordem do real, do impossível de falar, do não-dito, daquilo que não cessa de não se inscrever. Isso, segundo Lacan ([1962-1963] 1997), pode ter raízes com o corpo, é a libra de carne, é o corpo não simbolizado. É um resto no real. O ritual do día de los muertos mostra uma (in)junção do presente e do passado mexicano, é a mistura das tradições indígenas e espanholas, que revela algo que permanece tanto de uma cultura como de outra – altares e oferenda para os mortos. Entretanto, estes são tratados como se estivessem vivos, como se pudessem retornar. É aquilo que está morto no vivo, e enquanto resto, retorna. Portanto, na constituição do povo mexicano, nessa mistura de culturas, na articulação dessas linguagens, encontramos a inscrição, dentre muitos outros, do significante morto-vivo; que se, por um lado, é celebrado em dias de festa, em muitos outros retorna no real do sintoma implicado nesse processo, vinculado à função de resto. A violência cotidiana, principalmente sexual, dirigida contra mulheres e crianças, é uma realidade assustadora no México. Isso chama a atenção, uma vez que a sociedade mexicana é extremamente católica. Entretanto, o real e o sexual, tampouco são assunto religioso; ao contrário, o corpo na religião católica deve ser depreciado, pois é pedra no caminho da salvação. O cristianismo proclama uma vida despojada do corporal, pois a melhor forma de sentir-se perto da espiritualidade é quando se abandona a mundanidade, a luxúria e a lascívia do corpo. Um corpo purificado, mas que esconde o gozo de uma Angélica, de um anjo, sem corpo, sem sexo, sem vida, que não tem corpo, mas que entrega suas carnes para serem golpeadas. Discurso do amo, discurso religioso marcante na cultura mexicana, que dita o ordenamento do gozo e dos modos de acesso ao mesmo. Os sintomas cotidianos desvelam o modo de ser do mexicano, com seus ritos, festas, mortes, espaçamentos, estupros, que estão vinculados tanto ao discurso religioso católico, como a uma cepa antiga dos rituais que incluíam os sacrifícios humanos propriamente ditos. São restos, gozos engendrados que provocam a psicopatologia da vida cotidiana mexicana. Portanto, trata-se do processo de incorporação da linguagem e disso que sempre fica de fora nesta operação. Desse algo que resta a partir da entrada em uma cultura. Sempre permanece uma cepa. 155
156 Luciane Loss Jardim REFERÊNCIAS LACAN, Jacques. A angústia [1962-1963]. Publicação para circulação interna do Centro de Estudos Freudianos do Recife, 1997. LACAN, Jacques. De um outro ao Outro [1968-1969]. Inédito. LONGHENA, Maria. México antiguo; historia y cultura de los pueblos de Mesoamérica. México, D. F.: Editorial Oceano, 2005. PAZ, Octavio. El laberinto de la soledad. Madrid: Cátedra, 2004. RICARD, Robert. La conquista espiritual de México: ensayos sobre el apostolado y los métodos misioneros de las ordenes mendicantes em la Nueva Espana de 1523- 1524 a 1572. México, D.F.: FCF, 1986. Recebido em 19/04/2008 Aceito em 11/06/2008 Revisado por Valéria Rilho