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Mário Corso e Diana Lichtenstein Corso<br />
Portanto, no ato de separação do nascimento, para nascerem a mãe e o<br />
filho, morrem duas identidades já conhecidas: a grávida e o feto idealizado. O<br />
filho da fantasia, que nunca nasce, é uma espécie de complemento perfeito da<br />
mãe, a ele caberia reproduzir, do lado de fora, a fusão que existia dentro. Seu<br />
seio e ele encaixariam como feitos um para o outro, os ritmos de mãe e filho já<br />
começariam mutuamente ajustados e ela sempre compreenderia seus anseios.<br />
Pode parecer estranho, mas é bom que não seja assim. Apesar de que<br />
bons acordos entre eles sejam fundamentais, é nos interstícios dessa comunicação<br />
imperfeita que nasce um ser humano, modelado tanto pelo amor e os<br />
cuidados, quanto pelas frustrações, ausências e desencontros. É nos momentos<br />
em que a mãe se ausenta, ou que ela não compreende bem os anseios de<br />
seu bebê, que a criança precisa inventar-se. Para tanto, o filho criará para si<br />
uma representação do seio materno, símbolo do encaixe, recorrendo a seu dedo,<br />
à sucção da língua, a um trapinho, um bico, para aplacar a dor dessa falta.<br />
Esses sutis desencontros são também oportunidades de descobrir como chamar<br />
por atenção, vocalizando, assim como de aprender a distrair-se consigo<br />
mesmo, desenvolvendo a capacidade de brincar.<br />
Cada filho é visto como uma caixa de surpresas, ou até mesmo como<br />
uma caixa de Pandora, que contém nossos sonhos, mas também nossos pesadelos.<br />
Num filho se revelará o que não sabemos que somos e queremos; porém,<br />
isso assustadoramente terá vida própria. Ele é um pedaço de nós que ruma<br />
incessantemente para fora de nossos domínios, parte todos os dias de sua vida,<br />
levando consigo os segredos dos pais: alguns, ele os carregará em silêncio,<br />
como um fardo; outros, ele os dramatizará, jogando na cara deles tudo aquilo<br />
que eles nunca quiseram ver, como uma providência inconsciente para aliviar<br />
seu peso. Um filho, em suas palavras ou atos, revela os porões da nossa alma,<br />
parecendo-se com uma duplicação maligna, jogando com nossa fragilidade.<br />
O mecanismo, em A profecia, é o da projeção, na qual é atribuída ao filho<br />
a ausência de desejo da mãe. Mediante esse expediente, seria o filho que quereria<br />
eliminá-la, ao invés de ser descartado. Como costuma acontecer em todas<br />
as histórias de duplos, ele considera que não há lugar para os dois, precisará<br />
matá-la para viver. Embora a personagem da mãe, nesse filme, desejasse ter<br />
um filho, não era esse que viveu no lugar do seu amado feto a quem ela queria.<br />
Aqui temos a troca de bebês como um fato, mas o medo de que isso<br />
aconteça costuma assombrar os casais na maternidade. Algumas vezes ocorre<br />
que o bebê que aparece como usurpador do lugar do verdadeiro, o cuco, é o<br />
próprio, o recém-nascido que saiu de dentro das entranhas da mãe. Apenas ele<br />
não pôde ocupar um lugar no coração dela, que não suporta sua presença real,<br />
apegada à fantasia que, sim, sentia como realmente sua.