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Se Fernando vivesse ainda um pouco para ela, se não fosse quase um<br />
hóspe<strong>de</strong> em sua própria casa, cem claros indícios o teriam advertido do<br />
acanalhamento da mulher: toaletes; na escolha dos perfumes; nos penteadores e<br />
nas camisolas <strong>de</strong> levantar e <strong>de</strong>itar; nos livros eróticos, ornados <strong>de</strong> estampas<br />
grosseiramente obscenas, que andavam sobre os móveis do quarto e do boudoir;<br />
nos gestos; nas palavras.<br />
Mas ele próprio era outro, inteiramente diverso do que fora, nos bons e<br />
rápidos dias em que viveu com o seu idolatrado amigo morto. Tornara-se um vicioso,<br />
um viveur sem distinção, um epicurista vulgar, com o senso moral quase embotado;<br />
nada via, nada compreendia, nada encontrava <strong>de</strong> terrivelmente <strong>de</strong>nunciador em<br />
todos aqueles hábitos novos, nas mudanças operadas na mulher a partir <strong>de</strong> algum<br />
tempo.<br />
Corina só viu, e sem véus, em todo o seu horrível cinismo a alma do amante,<br />
quando se convenceu que este procurava explorá-la na bolsa, extorquir-lhe dinheiro,<br />
viver à sua custa, como os souteneurs <strong>de</strong>scritos nos livros imundos da Paris impura,<br />
da Paris-Cythèra, que havia lido com asco. Sim; aquele conquistador era um<br />
souteneur; se ela se não acautelasse, seria capaz <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong>la a sua marmite.<br />
Começou ele pedindo-lhe, com simulado acanhamento, que lhe arranjasse<br />
cem mil-réis, <strong>de</strong> que precisava com a maior urgência, para um "aperto danado".<br />
Corina, surpreendida, mas sem <strong>de</strong>sconfiança do que aquilo realmente<br />
significava, pediu no dia seguinte o dinheiro ao marido, "para comprar umas coisas",<br />
ele prontamente lho <strong>de</strong>u, tendo por costume satisfazer todos os pedidos e caprichos<br />
da mulher.<br />
Hugo recebeu o dinheiro, murmurou um "obrigado" entre dois beijos grossos<br />
e não falou mais em tal. No espírito <strong>de</strong> Corina ficou um amarujo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgosto, um<br />
ressaibo, a um tempo nauseante e amargo, como o que <strong>de</strong>ixa a poaia na boca.<br />
Poucas semanas <strong>de</strong>pois, Hugo pediu-lhe mais duzentos mil— réis. Ela teve<br />
um calafrio. Calou-se, a princípio; como ele, porém, a inquirisse em silêncio, com o<br />
cenho carregado, o olhar sombrio, <strong>de</strong>itado <strong>de</strong> bruços sobre o colchão, ao seu lado,<br />
balbuciou alguns monossílabos confusos... Ele carregou ainda mais a catadura e<br />
limitou-se a perguntar-lhe, com impassível <strong>de</strong>sfaçatez:<br />
— Pensarás tu, por acaso, que eu não tenciono pagar esse dinheiro?<br />
Julgas-me capaz <strong>de</strong> viver à custa das minhas amantes? Respon<strong>de</strong>.<br />
E fuzilavam-lhe malvadamente os olhos.<br />
Ela <strong>de</strong>sculpou-se, negando com calor; e prometeu-lhe o dinheiro. Desta vez<br />
o marido perguntou-lhe para que precisava <strong>de</strong> duzentos mil-réis, se ainda na<br />
véspera havia ele pago contas <strong>de</strong> chapéus e vestidos que somavam em quase um<br />
conto <strong>de</strong> réis. Ela sentiu-se enleada; abaixou a cabeça para ocultar o rubor das<br />
faces e disse, por fim, que era para uma jóia, um bracelete que vira, muito bonito, na<br />
vitrina do Luís <strong>de</strong> Rezen<strong>de</strong>. E Fernando <strong>de</strong>u-lhe o dinheiro.<br />
No seguinte domingo, falando-se em jóias, em meio <strong>de</strong> conversação geral,<br />
Fernando, voltando-se para a mulher:<br />
— E a propósitos — perguntou-lhe: — compraste o bracelete para que me<br />
pediste aqueles duzentos mil-réis?<br />
Corina, apanhada <strong>de</strong> improviso, corou tartamu<strong>de</strong>ou:<br />
— Ainda não, porque... o Luís <strong>de</strong> Rezen<strong>de</strong>já o tinha vendido e não achei<br />
outro que me agradasse tanto.<br />
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