Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
www.nead.unama.br<br />
— Ah! A tal carta. Já me esquecia... Mas <strong>de</strong> quem será? — monologou a<br />
meia voz e, rasgando o invólucro, foi entrando para o salão luxuoso, fartamente<br />
iluminado, mas <strong>de</strong>serto. Desdobrou a folha <strong>de</strong> papel branco, <strong>de</strong> que se evaporou um<br />
cheiro forte <strong>de</strong> opopônax.<br />
— Hum! É <strong>de</strong> mulher: conhece-se pelo cheiro e pela letra. Mas é anônima.<br />
Que será? — E pôs a lê-la com viva curiosida<strong>de</strong>.<br />
Mal começada a leitura, as mãos, que sustinham o papel, entraram a tremer;<br />
empali<strong>de</strong>ceu, cambaleou, caiu sobre uma ca<strong>de</strong>ira. A carta, que, com esforço enorme<br />
e violento, leu até o fim, dizia o seguinte, em boa caligrafia e sem muitos erros<br />
ortográficos:<br />
"Senhor Fernando Gomes. Enquanto o senhor passa a noite jogando e<br />
amando a insignificante Bianchini, sua mulher consola-se da sua ausência e da sua<br />
infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> com o seu amigo íntimo Hugo da Rosa, esse bandido, essa pústula.<br />
Todas as noites vai ele a esse clube verificar se o senhor aí está, <strong>de</strong>pois do que vai<br />
ocupar-lhe a cama tranqüilamente. Corra a casa, apenas receber esta, entre sem<br />
rumor e há <strong>de</strong> ver um belo espetáculo, digno <strong>de</strong> figurar nos contos <strong>de</strong> Rabelais.<br />
Quem isto lhe escreve, sem mesmo ter a precaução <strong>de</strong> disfarçar a letra, é uma das<br />
muitas vítimas daquele miserável, que <strong>de</strong>le tem sofrido torturas. Depois <strong>de</strong> <strong>de</strong>spojarme<br />
<strong>de</strong> um resto <strong>de</strong> pudor e <strong>de</strong> ilusão, que eram a minha felicida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>spojou-me das<br />
minhas economias e das minhas jóias e agora esbordôa-me quando não lhe arranjo<br />
dinheiro. Eu era uma viúva honesta antes <strong>de</strong> conhecê-lo. Hoje sou uma <strong>de</strong>sgraçada,<br />
que terá <strong>de</strong> acabar... sabe Deus on<strong>de</strong>. Resolvi <strong>de</strong>nunciá-lo para libertar-me <strong>de</strong>le e<br />
vingar-me também, acreditando que o senhor terá coragem e brio bastantes para<br />
matar esse infame sedutor como se mata um cão danado. Será um serviço â<br />
humanida<strong>de</strong>. Se o senhor nada fizer, por ser anônima esta carta, irei procurá-lo em<br />
pessoa e há <strong>de</strong> então, diante das provas irrecusáveis que lhe darei, reconhecer toda<br />
a triste e imunda verda<strong>de</strong>. Pulso firme e... a<strong>de</strong>us".<br />
Acabada a leitura, Fernando ergueu-se, esfregou os olhos, mediu a sala a<br />
passadas largas, agitadíssimo. Releu a carta, com dobrada atenção, como se não a<br />
houvera compreendido. Depois foi ao gabinete, abriu um cofre, tirou <strong>de</strong>le um<br />
revólver, que verificou estar carregado; meteu-o no bolso respectivo; apalpou a faca<br />
<strong>de</strong> cabo <strong>de</strong> prata, que trazia sempre na cava esquerda do colete; fechou a burra;<br />
tomou do chapéu e <strong>de</strong>sgalgou rápido as escadas.<br />
Uma vez na rua, atirou-se para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um dos tílburis estacionados à<br />
porta do clube, <strong>de</strong>u o en<strong>de</strong>reço ao cocheiro e disse-lhe com voz cavernosa:<br />
CAPÍTULO IV<br />
O CASTIGO<br />
— A galope, a todo o galope!<br />
O tilbureiro fustigou com vivacida<strong>de</strong>, a golpes estalados do pingalim, a<br />
magra e sonolenta pileca, que disparou no seu melhor galope. Mas, por mais rápido<br />
que o veículo corresse, a Fernando se afigurava que ele mal se movia. A sua<br />
impaciência era atroz... doía-lhe como uma queimadura.<br />
Nos 20 minutos que durou o trajeto não conseguiu formular um pensamento<br />
claro e completo, apesar <strong>de</strong> ter o seu pobre cérebro trabalhado incessantemente.<br />
107