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Mas nisso não houve culpa minha... Somos nós porventura senhores do nosso<br />
coração? Que vale dizer-lhe: "Não ames"? Ele não recebe or<strong>de</strong>ns; não é escravo: é<br />
senhor e déspota. Mas o meu <strong>de</strong>ver era afogá-lo no peito. Aquele amor era um<br />
crime: eu <strong>de</strong>via estrangulá-lo no nascedouro. Manda a verda<strong>de</strong> dizer que fiz esforços<br />
para isso; mas insuficientes, fracos... Eu <strong>de</strong>via ter abandonado a tua companhia,<br />
saído <strong>de</strong> tua casa, e dizer-te mesmo por que o fazia, lealmente: "Amo tua mulher<br />
como um louco e como sou teu amigo e homem <strong>de</strong> bem — <strong>de</strong>ixo-te, fujo". Não o fiz.<br />
Fui... amante... <strong>de</strong> tua mulher; mas somente quando te ausentaste para o rio da<br />
Prata. Não permaneci um só instante sob o teu teto, contigo, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> haver-te<br />
atraiçoado; dou-te a minha palavra <strong>de</strong> honra!... De honra? Tenho-a eu ainda,<br />
porventura? Po<strong>de</strong> um <strong>de</strong>sonrado invocar a honra? Dolorosa irrisão!<br />
A minha confissão está feita. Todo o tempo que passaste fora, fui amante <strong>de</strong><br />
Corina, gozei-a com ardor, com <strong>de</strong>lírio, alucinadamente... Há apenas algumas horas,<br />
no trem <strong>de</strong> ferro, recapitulando todas as peripécias, todos os inci<strong>de</strong>ntes da nossa<br />
ligação culposa, numa análise rigorosa <strong>de</strong> autopsicose, concluí por convencer-me <strong>de</strong><br />
que não a amava <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iro amor, mas somente <strong>de</strong> paixão carnal...<br />
Oh! Eu tinha necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> crê-lo para ter as forças necessárias ao<br />
cumprimento do meu <strong>de</strong>ver; para não retroce<strong>de</strong>r covar<strong>de</strong>mente e ir viver com ela e<br />
contigo, em ménage à trois, como fazem tantos... Horrorizou-me a idéia <strong>de</strong> vivermos<br />
juntos, os três, sob o mesmo teto, como dantes, e por isso propus-lhe abandonar a<br />
casa e o marido à luz meridiana, para acompanhar-me.<br />
Sim, propus-lhe essa infâmia... tanto a amava! Mas aten<strong>de</strong> que ela é<br />
infinitamente menos vil que continuar teu hóspe<strong>de</strong>, teu protegido, partilhando-te tudo<br />
— mesa e cama. Juro-te que a minha intenção era não me <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r se me<br />
atacasses, era <strong>de</strong>ixar matar-me in<strong>de</strong>feso: era aquele o teu direito e era este o meu<br />
<strong>de</strong>ver. Ela, porém, não quis: não me amava. Quando se ama sorri-se ao perigo,<br />
arrosta-se a morte. Não me amava, acredita-o.<br />
A idéia <strong>de</strong> ver-te novamente, <strong>de</strong> abraçar-te, <strong>de</strong> estreitar-te a mão leal era-me<br />
insuportável... Senti-me incapaz <strong>de</strong>ssa baixeza e isso elevou-me moralmente um<br />
pouco aos meus próprios olhos. Resolvi matar-me, porém antes que novamente nos<br />
víssemos; não queria que teus olhos pousassem sobre os meus <strong>de</strong>pois que a luz<br />
<strong>de</strong>les se maculara no lodo da traição: não mereciam aquela honra. Parti esta manhã<br />
na véspera da tua chegada.<br />
Talvez, no entanto, hajas <strong>de</strong>sembarcado hoje mesmo e a esta hora tenhas<br />
nos braços... tua mulher... e nos seus beijos não sintas ressábios dos meus... Ah!<br />
Fernando, este pensamento queima-me o cérebro como uma brasa viva... Tenho<br />
ciúmes, sim! Para que mentir-te... a dois passos da morte? Se já sabes tudo! E,<br />
entretanto, falas talvez em mim; estranhas e comentas a minha partida e ausência e<br />
isso turva-te a felicida<strong>de</strong> do regresso ao lar... enquanto eu, aqui, neste quarto <strong>de</strong><br />
hospedaria, escrevo neste papel que... tenho ciúmes <strong>de</strong> ti! Monstruoso! Que<br />
imundícia — a vida!<br />
Sabes que tua mulher te é infiel. Descobriste-o... (Falo transportando-me ao<br />
futuro.) Conhecendo-te como te conheço, tenho a pré-segurança <strong>de</strong> que mataste o<br />
homem com quem ela repartia suas carícias... Mataste-o; bem. Mas tua mulher?<br />
Que lhe fizeste? Tê-la-ias matado também? Receio-o muito e este receio inquietame.<br />
Espero, entretanto, que te hajas comiserado <strong>de</strong>la, que lhe tenhas perdoado.<br />
A mulher é um ente moralmente inferior, irresponsável pelo mal que faz,<br />
pelos infortúnios que espalha em torno <strong>de</strong> si. Conheces as minhas teorias a este<br />
respeito, porque leste o meu livro, além <strong>de</strong> que inúmeras vezes conversamos <strong>de</strong> tais<br />
assuntos. Se mataste o amante <strong>de</strong> tua mulher, fizeste bem; mas se também a esta,<br />
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