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www.nead.unama.br<br />
ainda a beijou, ainda lhe pediu e passou com ela uma noite <strong>de</strong> amor, a <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira,<br />
que não foi das menos ar<strong>de</strong>ntes.<br />
Não, se a amasse com a alma, com o coração, espiritualmente, não teria<br />
forças nem <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> gozar-lhe o corpo, <strong>de</strong> cevar os seus sentidos insaciáveis nas<br />
suas carnes <strong>de</strong>liciosas <strong>de</strong> calor, <strong>de</strong> perfume e <strong>de</strong> maciez; porque não se vê partir-se<br />
um i<strong>de</strong>al, não se po<strong>de</strong> vê-lo <strong>de</strong>sfazer-se em pó sem um arrancamento doloroso <strong>de</strong><br />
toda a alma, sem se sentir que esta se partiu igualmente, que abriu água e vai<br />
afundar-se em breve no pélago sombrio do <strong>de</strong>sespero, no silêncio do <strong>de</strong>samparo.<br />
Amor <strong>de</strong>ve ser algo <strong>de</strong> mais sublime, <strong>de</strong> mais casto e <strong>de</strong> mais doloroso.<br />
O que fora então aquilo? Paixão, embriaguez dos sentidos, loucura erótica,<br />
amor carnal... tudo menos esse sentimento misto espiritual e corporal, a um tempo<br />
i<strong>de</strong>al e sensual, voluptuoso e casto, todo <strong>de</strong> alma e <strong>de</strong> beijos, em que dois seres <strong>de</strong><br />
sexos diferentes se encontram, se fun<strong>de</strong>m, se completam e se unificam; esse<br />
sentimento que ele não experimentara ainda, mas que compreendia perfeitamente e<br />
sabia existir tão real e verda<strong>de</strong>iro como nas ficções e nas tradições clássicas e<br />
românticas <strong>de</strong> Romeu e Julieta, <strong>de</strong> Leandro e Hero, <strong>de</strong> Heloisa e Abelíardo, <strong>de</strong><br />
Paulo e Virgínia, <strong>de</strong> Werther e Carlota, <strong>de</strong> Laura e Petrarca, <strong>de</strong> Paolo e Francesca...<br />
A imaginação alindava, embrincava, <strong>de</strong> certo, essas ligações, tocando-as<br />
<strong>de</strong>licadamente <strong>de</strong> sonho; mas não lhes alterava a natureza, não lhes aumentava a<br />
intensida<strong>de</strong> afetiva. Ele sentia-se capaz <strong>de</strong> iguais extremos, <strong>de</strong> emparelhar com<br />
esses amantes célebres na pujança e na <strong>de</strong>dicação do amor, <strong>de</strong> amar com<br />
sublimida<strong>de</strong> igual.<br />
Mas o acaso fê-lo per<strong>de</strong>r-se por um <strong>de</strong>svio, afastou-o da estrada real da<br />
felicida<strong>de</strong> para levá-lo a colher num moital <strong>de</strong> atalho uma bela flor venenosa, a cujo<br />
perfume anestesiante adormeceu embriagado, crendo-se feliz.<br />
E então uma idéia amarga lhe veio, que lhe <strong>de</strong>buchou nos lábios a sombra<br />
<strong>de</strong> um sorriso dolorido: Ia matar-se por uma mulher que não amava? Mas logo<br />
refletiu melhor e retificou o pensamento molesto: não era por ela que se matava;<br />
mas por ele próprio, porque se havia <strong>de</strong>sonrado fazendo a <strong>de</strong>sonra do seu melhor<br />
amigo, do seu protetor, do homem que tinha por ele o amor e a confiança <strong>de</strong> um pai,<br />
e porque não queria sobreviver a essas duas <strong>de</strong>sonras.<br />
E quão melhor não era isso não o amando Corina que se ela o amasse? Ah!<br />
Se ela o amasse, e se ele a amasse, como lhe seria penoso, difícil, torturante ter <strong>de</strong><br />
matar-se! Que idéia medonha, sobre-humana <strong>de</strong> horri<strong>de</strong>z, e da morte em pleno e<br />
perfeito amor! Mas, felizmente, não se amavam; <strong>de</strong>sejaram-se, <strong>de</strong>sejavam-se talvez<br />
ainda, na atração mútua dos seus temperamentos tropicais, e era tudo...<br />
Ele podia morrer sem mágoa, sem pena, sem <strong>de</strong>sespero; triste, <strong>de</strong> certo, da<br />
tristeza insondável e lúgubre dos gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>siludidos, mas sereno e até,<br />
relativamente, satisfeito — satisfeito por cumprir o <strong>de</strong>ver e não prejudicar a ninguém,<br />
cumprindo-o.<br />
Caminhava para o suicídio serenamente, com a resignação corajosa do<br />
soldado que, prisioneiro do inimigo implacável, vai ser passado pelas armas e se<br />
adianta para o lugar da execução sem um gesto <strong>de</strong> súplica, sem um olhar <strong>de</strong> pavor.<br />
No fim <strong>de</strong> algum tempo as idéias baralharam-se, o cérebro conturbou-se<br />
suavemente, as pálpebras, fechadas mas leves até então, colaram-se pesadas <strong>de</strong><br />
sono... Adormeceu.<br />
Como lhe pareceu longa e fastidiosa essa viagem! A longura natural do<br />
trajeto era aumentada pelas <strong>de</strong>moras, interrupções e <strong>de</strong>sarranjos causados pelo<br />
péssimo serviço da estrada.<br />
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