15.04.2013 Views

Flor de Sangue - Unama

Flor de Sangue - Unama

Flor de Sangue - Unama

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

www.nead.unama.br<br />

Chegou à capital paulista já noite fechada e foi com um gran<strong>de</strong> suspiro <strong>de</strong><br />

alívio que, meia hora <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong>sceu do carro á porta do Gran<strong>de</strong> Hotel, às sete<br />

horas e meia saía para a rua, lavado, corretamente vestido, sentindo apenas algum<br />

peso na cabeça.<br />

Estava perfeitamente calmo. Foi a uma botica próxima ao hotel, mandou<br />

preparar uma poção calmante, que <strong>de</strong>viam enviar-lhe para o hotel, quarto n 9 35 e<br />

saiu em procura <strong>de</strong> uma papelaria. Encontrou uma na rua Quinze <strong>de</strong> Novembro,<br />

entrou, comprou papel almaço, alguns ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> papel <strong>de</strong> carta, envelopes, um<br />

botezinho <strong>de</strong> tinta, uma caneta, algumas penas, um pau <strong>de</strong> lacre e, tendo enviado<br />

isso para o hotel pelo Alfred, que o acompanhara e a quem dispensou nessa<br />

ocasião os serviços até o dia seguinte tomou um bon<strong>de</strong> da Ponte Gran<strong>de</strong> e foi até<br />

ao fim da linha, gozando o esplêndido passeio, pensando, cismando, suavemente<br />

melancolizado, com um vago <strong>de</strong>sejo mórbido <strong>de</strong> chorar muito, muito, até <strong>de</strong>safogar<br />

todos os pesadumes, até lavar a alma num batismo lustral <strong>de</strong> lágrimas. E fumava,<br />

fumava...<br />

Na Ponte Gran<strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> estudantes e raparigas patuscava<br />

ruidosamente; trocavam-se abraços, estalavam beijos, diziam-se obscenida<strong>de</strong>s.<br />

Paulino voltou no mesmo bon<strong>de</strong>, mais entristecido ainda por aquele espetáculo.<br />

Eram <strong>de</strong>z horas da noite quando entrou no quarto. Sobre a mesa estavam o<br />

vidro da poção e os objetos que comprara. O aposento, que era no segundo andar,<br />

estava regularmente mobiliado e oferecia razoável conforto. Paulino abriu a janela,<br />

contemplou por alguns minutos o panorama noturno da cida<strong>de</strong>; <strong>de</strong>pois fez a sua<br />

toalete para dormir e sentou-se à mesa.<br />

Preparou tudo para escrever; mas ergueu-se e entrou a passear no quarto,<br />

acabando o quinto charuto, coor<strong>de</strong>nando idéias, preparando um plano. Queria <strong>de</strong>ixar<br />

tudo previsto, disposto, or<strong>de</strong>nado. Tinha que fazer testamento, que <strong>de</strong>ixar instruções<br />

para a distribuição <strong>de</strong> seus bens como também para seu enterro e funeral.<br />

E Fernando? Não lhe <strong>de</strong>via escrever? Mas para dizer-lhe o que? a<br />

verda<strong>de</strong>ira causa do suicídio? De repente, apenas repelira tal idéia, por insensata,<br />

viu claramente que ela era, ao contrário, mais que razoável — necessária,<br />

indispensável.<br />

"Devo dizer-lhe, sim, a razão por que me mato, porque sem isso a minha<br />

morte seria um sacrifício inútil. Por que me mato eu? Por tédio e cansaço da vida?<br />

Não; por <strong>de</strong>sgostos pessoais? Não. Mato-me somente porque, tendo cometido um<br />

crime irreparável, que só é punível e resgatável com a morte, e, sendo um homem<br />

<strong>de</strong> honra e verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>vo punir o criminoso e resgatar o <strong>de</strong>lito; Mas ambos esses<br />

atos per<strong>de</strong>riam completamente o seu valor moral, ficariam incompletos, seriam<br />

quase inúteis se Fernando os ignorasse, porque ficaria acreditando na minha estima,<br />

na minha lealda<strong>de</strong>, na minha honra<strong>de</strong>z; e, por isso, <strong>de</strong>dicaria à minha memória um<br />

culto <strong>de</strong> veneração e sauda<strong>de</strong> que ela não merece. Para que a minha morte seja o<br />

que eu quero e é necessário que seja, Fernando <strong>de</strong>ve conhecer-lhe as causas. Eu<br />

seria um <strong>de</strong>sleal ocultando-lhas, porque lhe usurparia postumamente sentimentos <strong>de</strong><br />

que me tornei indigno. Formoso é pois, que lhe <strong>de</strong>ixei eu uma carta revelando tudo.<br />

E esta a primeira coisa que tenho a fazer. Não percamos tempo. Mãos à obra!"<br />

Sentou-se à mesa, preparou tudo e quando pegou da pena exclamou, como<br />

que insensivelmente: "Pobre Fernando!" Ouvindo estas palavras, como se viesse <strong>de</strong><br />

outro, encolheu o braço que se estendia para mergulhar a pena no tinteiro, e fixou<br />

absortamente os olhos na pare<strong>de</strong>. Aquelas palavras "Pobre Fernando!" lembravamlhe<br />

<strong>de</strong> súbito que a sua carta terrível ia matar a felicida<strong>de</strong> do amigo, afogar-lhe a vida<br />

calma e contente na vergonha, na dor e no <strong>de</strong>sengano mortal.<br />

75

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!