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Assim raciocinava e resolvia Paulino, e, no entanto, ia ficando, ia<br />
transferindo in<strong>de</strong>finidamente o dia da partida. Não tinha coragem para sacudir dos<br />
ombros o peso férreo do seu martírio.<br />
Como o procedimento <strong>de</strong> Corina, todo <strong>de</strong> reserva e indiferente afabilida<strong>de</strong>,<br />
nada tinha <strong>de</strong> alarmante, não <strong>de</strong>nunciava um perigo próximo, não via o médico<br />
necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> precipitar a execução <strong>de</strong> seu plano, o qual, se o salvava<br />
moralmente, podia trazer-lhe imensos prejuízos materiais.<br />
E, <strong>de</strong>pois, ele achava nobre aquela luta, dignificante aquele sofrer. Fugir fora<br />
covardia. Ficar, resistir ao seu temperamento e vencê-lo, era <strong>de</strong>ver. Cumpri-lo-ia até<br />
ao fim, serenamente, embora com o coração <strong>de</strong>spedaçado pelo seu amor maldito,<br />
como o infante espartano fizera com a raposa furtada: sem um gemido, sem uma<br />
contração da face. O temperamento <strong>de</strong>ve ser um escravo do homem e não o seu<br />
senhor; do contrário seria a civilização uma palavra vã, e a socieda<strong>de</strong> um parque <strong>de</strong><br />
feras hipócritas.<br />
E com tal filosofar iludia-se Paulino, mascarando a própria alma, cobrindo <strong>de</strong><br />
areia fria e branca as úlceras do coração. A verda<strong>de</strong> era que a tática <strong>de</strong> Corina,<br />
habilmente dirigida por Santinha, dia a dia o punha mais apaixonado e perdido <strong>de</strong><br />
amor e lhe tirava a força <strong>de</strong> fugir-lhe.<br />
Se ela tivesse um brusco movimento <strong>de</strong> paixão para ele, em vez da<br />
esquivança e indiferença que afetava, tê-lo-ia assustado, abrir-lhe-ia os olhos sobre<br />
o abismo que o esperava, e ele fugiria espavorido, para salvar-se e salvá-la. Mas,<br />
assim, ele podia iludir-se, tomar sua situação pelo lado que lhe agradava e convinha<br />
— como um crisol, penoso embora, da têmpera do seu caráter, como uma luta<br />
heróica e nobilitante.<br />
Mais <strong>de</strong> uma vez teve ocasião, não buscada, <strong>de</strong> surpreendê-la em<br />
<strong>de</strong>shabillé matutino, jardinando, voltando do banho frio, com os cabelos<br />
<strong>de</strong>snastrados e úmidos, ou à noite, já em roupão <strong>de</strong> dormir, espumante <strong>de</strong> rendilhas<br />
e fitas, como forçosamente acontece na vida comum dos que coabitam o mesmo<br />
teto ou mantêm relações <strong>de</strong> convivência estreita e constante.<br />
Nesses dias Paulino sofria como um réprobo. O seu sangue impetuoso<br />
rugia-lhe nas veias, cachoava-lhe no estuário do coração, afogueava-lhe a cabeça,<br />
enfebrecia-o como se um veneno ar<strong>de</strong>nte se houvesse insinuado nele.<br />
Tinha ímpetos doidos <strong>de</strong> apossar-se daquele corpo capitoso e excitante, e<br />
<strong>de</strong> gozá-lo longamente, alucinadamente, até morrer estreitando-o no <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro<br />
abraço, expirando a alma e a vida no <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro beijo.<br />
Esse combate intimo e tremendo minava-lhe a saú<strong>de</strong>. Andava pálido e<br />
emagrecia evi<strong>de</strong>ntemente — o que Fernando explicava pela vida <strong>de</strong> noceur do<br />
amigo e dona Benga pelo excesso <strong>de</strong> trabalho do irmão. Corina, essa, não per<strong>de</strong>ndo<br />
o mínimo indício dos resultados daquela luta, parecia, no entanto, nada perceber, e<br />
dava-se toda em aparência, à vida <strong>de</strong> luxo, ostentação e prazeres em que vivia<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> algum tempo.<br />
Para Paulino, essa indiferença e <strong>de</strong>spreocupação da moça pela pessoa <strong>de</strong>le<br />
explicavam-se do modo mais simples. Corina estava apaixonada, ou, pelo menos,<br />
entretida por outro, e esse outro <strong>de</strong>via ser o barão <strong>de</strong> Santa Lúcia — esse nulo,<br />
correto e grave possuidor do prestígio comum do dinheiro, da toalete e <strong>de</strong> um título<br />
barato. Adquiriu essa certeza, já preparada pela <strong>de</strong>scoberta que havia feito no sarau<br />
da Chiquita Prestes, quando Alfred lhe revelou que dona Sinhá freqüentava uma<br />
casinha suspeita na rua <strong>de</strong> Santo Antônio, ou melhor, quando verificou pelos seus<br />
próprios olhos que essa revelação exprimia a verda<strong>de</strong>.<br />
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