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Flor de Sangue - Unama

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www.nead.unama.br<br />

Era um morrer gradual. O quarto, apesar <strong>de</strong> todos os cuidados <strong>de</strong> asseio,<br />

exalava um fétido estranho e forte, vindo da cama em que aquele organismo se<br />

<strong>de</strong>compunha progressivamente, em vida, <strong>de</strong>ixando nas roupas do leito e passando<br />

ao ar secreções e exalações acres. Por fim, o período do estertor começou; mas foi<br />

longo, pungentíssimo. Aquele som cavo, áspero, entrecortado como o <strong>de</strong> um<br />

maquinismo ferrugento, funcionando à força <strong>de</strong> pulso, e que interrompiam gorgolejos<br />

e engulhos, enchia o quarto, os corredores, as salas, toda a casa, ouvia-se <strong>de</strong><br />

qualquer ponto <strong>de</strong>la. Era um rumor sinistro, impertinente, horrível!<br />

Nos últimos dias, e sobretudo no <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro, as portas e janelas estavam<br />

abertas <strong>de</strong> par em par; as visitas entravam e saiam francamente, sem serem mais<br />

recebidas ou acompanhadas por alguém da casa. Muitas chegavam, viam o<br />

moribundo e saíam sem que fossem percebidas. Esperava-se o <strong>de</strong>senlace a todo<br />

momento; e esse momento não chegava.<br />

O dr. Paulino, interrogado, não pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar com precisão a hora do<br />

passamento. Julgava que seria à meia-noite, e amanhecia mais um dia sem que o<br />

<strong>de</strong>sgraçado se houvesse libertado daquele resto miserável <strong>de</strong> vida.<br />

Tratou-se do enterro, do funeral e dos convites com tempo, <strong>de</strong>moradamente.<br />

Chiquita, que a princípio chorava bastante, parecia agora resignada ao seu infortúnio<br />

e tratava, com tristeza mas sem confusão, dos aprestos fúnebres.<br />

As pessoas ocupadas a encher os convites interrompiam o trabalho, noite<br />

a<strong>de</strong>ntro, para tomar café, e, mais <strong>de</strong> uma vez, para correr ao quarto, supondo que o<br />

conselheiro já houvesse expirado.<br />

Quando ele, finalmente, extinguiu-se, às cinco e meia da madrugada, sem<br />

uma contração <strong>de</strong> face, na qual duas grossas e longas lágrimas escorriam dos olhos<br />

vidrados, murchos no fundo das órbitas ósseas, tudo está pronto — enterro<br />

encomendado, convites sobrescritados, anúncios redigidos.<br />

Um portador foi logo levar a notícia aos jornais, para ser afixada em boletins<br />

à porta; outro foi enviado à Santa Casa para pedir o enterro para as quatro horas da<br />

tar<strong>de</strong>, levando o atestado <strong>de</strong> óbito, passado pelo dr. Paulino José <strong>de</strong> Castro; um<br />

terceiro, ainda, para avisar Fernando, que se havia retirado às 11 horas da noite,<br />

receoso <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar a casa entregue só aos criados.<br />

Chiquita Prestes teve um violento ataque <strong>de</strong> nervos, conquanto preparada<br />

<strong>de</strong> há muito para aquele transe medonho. Mas passada a crise, volveu à anterior<br />

serenida<strong>de</strong>; e era com um sorriso contrafeito e doloroso que respondia às<br />

condolências banais das amigas e às consolações estúpidas que lhe dirigiam.<br />

— É o caminho <strong>de</strong> nós todos — suspirava uma velha. — Que se lhe há <strong>de</strong><br />

fazer? Todos nós temos <strong>de</strong> passar por isto, mais dia menos dia. O senhor<br />

conselheiro era um santo homem e vai fazer muita falta, <strong>de</strong>certo; mas não po<strong>de</strong>mos<br />

ressuscitá-lo com as nossas lágrimas. Não se adianta nada em chorar, minha<br />

senhora. Resigne-se com a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus.<br />

Um dos amigos fumava no quarto mortuário, para evitar qualquer infecção.<br />

Outro aspergia tudo <strong>de</strong> água fenicada, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> bem molhadas com essa solução<br />

anti-séptica as roupas do cadáver e as da cama. Paulino fechou-lhe os olhos e a<br />

boca, unindo os maxilares com uma fita preta e larga, que atou sobre o alto da<br />

cabeça. Corina, <strong>de</strong> joelhos, com a cabeça encostada ao leito sobre um braço<br />

dobrado, chorava ininterrompidamente, apertando uma das mãos do morto. As<br />

flamas altas dos círios amarelejavam na clarida<strong>de</strong> branca e radiante do dia recémnascido.<br />

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