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www.nead.unama.br<br />
Paulino tinha resolvido matar-se.<br />
Quando o resolveu? Em que momento se lhe formou no cérebro essa idéia?<br />
Quando se transformou ela em volição, e esta em intenção <strong>de</strong>liberada? Não po<strong>de</strong>ria<br />
dizê-lo, não o sabia. A idéia do suicídio surgiu-lhe no pensamento e <strong>de</strong>le<br />
assenhoreou-se, como um hóspe<strong>de</strong> esperado, com o qual se conta, que entra e<br />
ocupa o aposento que se lhe havia preparado. Ele vira-a quando Corina recusou<br />
fugir com ele para a Europa, antes que Fernando chegasse.<br />
A fuga era uma infâmia que <strong>de</strong>corria naturalmente, logicamente da primeira,<br />
do próprio adultério, e que encontraria atenuantes na presunção do muito amor, da<br />
paixão veemente que os unia no crime, <strong>de</strong> modo irresistível, e na estrepitosa<br />
publicida<strong>de</strong>, na escandalosa audácia com que, fugindo juntos, a confessavam e<br />
assumiam a responsabilida<strong>de</strong> do ato ilícito e das suas conseqüências.<br />
Aquela recusa foi um jato súbito e copioso <strong>de</strong> luz no cérebro do médico e<br />
que o fez ver claramente coisas tremendas, ocultas na sombra até então. Dessas<br />
coisas, <strong>de</strong>stacadas fortemente em arestas e contornos duros, na luz crua daquela<br />
revelação, as capitais eram — que Corina não o amava, que se lhe entregara como<br />
se entregaria a outro qualquer nas suas condições, como se havia <strong>de</strong> entregar,<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong>le, a outros mais, por volubilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> caráter e perversão moral, por um<br />
coquetismo pernicioso, produto da educação e do meio, a que o seu temperamento<br />
se adaptara perfeitamente; que ele, Paulino, era um homem <strong>de</strong>sonrado, um infame<br />
vulgar, que, por lascívia grosseira, seduz e goza a mulher do amigo, aproveitando<br />
bem a sua ausência; e, por último, que <strong>de</strong>via matar-se.<br />
E <strong>de</strong> todas essas coisas e outras que então <strong>de</strong>scobriu foi essa última a que<br />
ficou, a que permaneceu, nítida, simples, assente. Não precisou discuti-la. Era<br />
evi<strong>de</strong>nte, irrecusável, boa, necessária como o sol.<br />
Se Corina o amasse e o seguisse com cega obediência, ele a arrebataria ao<br />
marido à vista <strong>de</strong> toda a socieda<strong>de</strong>, francamente, audazmente, arrostando todas as<br />
conseqüências do seu ato, cuja infâmia o amor explicaria, se não justificasse.<br />
Mas havia-se enganado: aquela mulher não o amava, não o preferia ao<br />
marido, não queria o amante senão na comodida<strong>de</strong> vil do adultério, na tepi<strong>de</strong>z do<br />
ménage à trois. E esse erro <strong>de</strong>le era irreparável.<br />
No abismo a que se havia precipitado, cego <strong>de</strong> paixão carnal, esperara<br />
sempre, embora vagamente, encontrar um arbusto resistente, uma ossatura <strong>de</strong> raiz<br />
<strong>de</strong>scoberta, uma saliência <strong>de</strong> solo a que pu<strong>de</strong>sse agarrar-se, em que pu<strong>de</strong>sse salvar<br />
a honra e, portanto, a vida. Mas nada encontrara. Corina era uma adúltera vulgar,<br />
que, sensual e medrosa, preferindo tudo ao escândalo e aos incômodos da fuga,<br />
convidava-o covar<strong>de</strong>mente às baixezas vilíssimas da traição cotidiana, <strong>de</strong> todos os<br />
instantes, sob o teto conjugal, medrando tranqüila à sombra da confiança do marido<br />
enganado. Que surpresa e que nojo! Só lhe restava um partido — matar-se.<br />
Isso ele sentiu, isso viu repentinamente, <strong>de</strong> golpe, sem raciocinar, por uma<br />
espécie <strong>de</strong> instinto moral. Dir-se-ia que aquela resolução tremenda já a havia ele <strong>de</strong><br />
há muito tomado e que ela apenas aguardava, completa e pronta, o momento <strong>de</strong><br />
passar ao estado <strong>de</strong> fato.<br />
Agora, encostado a um recanto do vagão, braços cruzados, olhos cerrados,<br />
aspecto calmo <strong>de</strong> viajante <strong>de</strong>spreocupado, que a trepidação do trem adormece:<br />
agora, que segue rapidamente para a morte, como para uma estação terminal a que<br />
um <strong>de</strong>ver urgente e iniludível o impelisse, é que ele reconhece, com espanto, que<br />
não amava aquela mulher encantadora senão com a carne, sensualmente,<br />
fisicamente apenas. E a prova mais convincente é que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>senganado<br />
acerca dos sentimentos <strong>de</strong>la por ele, <strong>de</strong>pois mesmo <strong>de</strong> haver resolvido matar-se,<br />
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