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Flor de Sangue - Unama

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www.nead.unama.br<br />

sonhando. Não vais morrer nada. Então morre-se assim com duas razões, só porque<br />

se aproveitam e se gozam as mulheres que se oferecem à gente?"<br />

Mas então apareceu no ar um corvo <strong>de</strong> asas imensas, com a cabeça <strong>de</strong><br />

Fernando que gritava com uma voz tão cavernosa e tão extensa que enchia todo o<br />

espaço, repercutindo muito longe: "Vais morrer, sim, traidor, infame, ingrato!"<br />

Não se lembrava da continuação <strong>de</strong>sse sonho terrível. Mas <strong>de</strong> todo ele uma<br />

idéia lhe ficara, nítida e forte, acudindo-lhe, apenas <strong>de</strong>sperto: — morrer.<br />

Lembrou-se então que, <strong>de</strong> fato, ele tinha <strong>de</strong> morrer, que viera aquele lugar<br />

para isso. Mas, no cérebro, atordoado pelo narcótico e enfumado ainda pelos<br />

nimbos revoltos dos sonhos, não surgiu logo, inteira, a realida<strong>de</strong> da sua situação;<br />

não sabia como ia morrer, se o iam matar...<br />

Fez um esforço <strong>de</strong> memória, esfregou os olhos, olhou com fixi<strong>de</strong>z para os<br />

móveis do quarto e foi só vendo as folhas <strong>de</strong> papel escritas sobre a mesa que se<br />

recordou que <strong>de</strong>via morrer nas suas próprias mãos. Seu cérebro não se havia ainda<br />

habituado àquela idéia, que, por isso, lhe fugia à retentiva.<br />

Um relógio, afastado, tiniu horas. Contou-as: nove. Nove horas! Dormira<br />

bastante! Fora a poção. E então lembrou-se que a morte não <strong>de</strong>via ser outra coisa<br />

mais que um gran<strong>de</strong>, um invencível narcótico.<br />

Morrer! Extinguir-se, <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, não ser, o nada... E um pavor estranho<br />

invadiu-lhe o cérebro, como uma lufada fria <strong>de</strong> vento hibernal.<br />

Teve medo, teve horror... Era tão bom viver! Havia tantas terras curiosas que<br />

viajar, tantas mulheres moças, bonitas e fáceis pedindo amor, pedindo homem! E ele<br />

tinha <strong>de</strong> morrer, assim: forte, bom, cheio <strong>de</strong> vida, moço, se<strong>de</strong>nto <strong>de</strong> gozo! Era<br />

estúpido! E se não se matasse? Para satisfazer os ditames da sua consciência<br />

bastaria ir ter com Fernando e dizer-lhe: "Dormi com tua mulher, gozei-a em tua<br />

ausência. Faze agora o que enten<strong>de</strong>res." — Talvez mesmo nem isso. Foi ela, afinal,<br />

que o seduziu, que lhe preparou habilmente a ocasião, que o excitou <strong>de</strong> modo<br />

irresistível. Ele não era <strong>de</strong> mármore. E, afinal, aquilo era coisa que se via todos os<br />

dias. Se todos os homens no caso <strong>de</strong>les se suicidassem, fora uma hecatombe!...<br />

Mas a figura simpática e leal <strong>de</strong> Fernando surgiu-lhe à mente e, nesse<br />

instante, toda a extensão do crime que cometera enganando-o, abusando<br />

miseravelmente da confiança paternal que <strong>de</strong>positara nele, <strong>de</strong>senrolou-se-lhe aos<br />

olhos. Então, com um frêmito <strong>de</strong> horror, sem mais raciocinar, sem recordar mais<br />

nada, compreen<strong>de</strong>u que o suicídio era inevitável.<br />

Entretanto, para prevenir-se contra o medo e o horror <strong>de</strong>ssa idéia, resolveu<br />

agitar-se, entreter o pensamento nos preparativos e disposições finais até que, tudo<br />

concluído, chegasse o momento fatal. Tinha <strong>de</strong> ser; acabou-se.<br />

Saltou da cama, premiu o botão da campainha elétrica; pediu ao criado que<br />

o levasse ao banheiro.<br />

Voltando do banho frio, tomou uma xícara <strong>de</strong> café, e estava acen<strong>de</strong>ndo um<br />

cigarro, em robe <strong>de</strong> chambre, quando bateram a porta.<br />

— Entre quem é.<br />

— Dás licença?<br />

"Eu conheço esta voz", pensava Paulino; mas não teve tempo <strong>de</strong> lembrar-se<br />

da pessoa que tinha aquela voz, porque ela acabava <strong>de</strong> entrar.<br />

— Oh! Julião! Que surpresa ver-te! Juro-te que não pensava em ti.<br />

— Naturalmente... pensa-se lá nos amigos insignificantes como eu!<br />

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