Prosa - Academia Brasileira de Letras
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Hel<strong>de</strong>r Macedo<br />
Dom Casmurro é a gran<strong>de</strong> síntese e a culminação estética da dialéctica machadiana<br />
sobre verosimilhança e verda<strong>de</strong> – ou <strong>de</strong>terminismo e responsabilida<strong>de</strong> –<br />
inerente aos dois livros anteriores. Machado caracteriza o personagem principal,<br />
Bento Santiago, através do acto narrativo que lhe atribui. E este, enquanto<br />
narrador, parece <strong>de</strong> início ter adoptado um tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sorganização estrutural<br />
premeditadamente não-realista, à maneira <strong>de</strong> Brás Cubas. Parece e procura que<br />
pareça. Porque, enquanto personagem, fazexactamente o oposto, e o seu discurso<br />
é tão <strong>de</strong>terminístico quanto a filosofia <strong>de</strong> Quincas Borba. Com efeito, <strong>de</strong><br />
um ponto <strong>de</strong> vista semântico, Bento Santiago proce<strong>de</strong> estritamente em termos<br />
<strong>de</strong> causa e efeito, como qualquer realista programático, visando provar – através<br />
da acumulação gradual <strong>de</strong> “pequenos factos significativos”, à maneira <strong>de</strong><br />
Taine – que o futuro estava inevitavelmente previsto no passado, ou seja (na<br />
lógica perversa do <strong>de</strong>terminismo), que o efeito é a explicação da causa. O primordial<br />
objectivo da prova urdida por Bento Santiago é que a Capitu adulta,<br />
que o teria traído, já estava contida, “como a fruta <strong>de</strong>ntro da casca”, na Capitu<br />
menina que ele havia amado. Pre<strong>de</strong>terminação, portanto, e pecado original. A<br />
mesma lógica <strong>de</strong>terminística visa também a justificar perante si mesmo a transformação<br />
do inocente Bentinho, pre<strong>de</strong>stinado pela promessa da mãe ao seminário,<br />
no velho monacal <strong>de</strong> “hábitos reclusos e calados” que veio a fazer jus à<br />
alcunha <strong>de</strong> “Dom Casmurro” nos seus últimos anos solitários. Qualquer outra<br />
alternativa teria pressuposto a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolha ou – no termo mais<br />
a<strong>de</strong>quado ao seminarista que Bento Santiago nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser – <strong>de</strong> livre arbítrio,<br />
com a sua inescapável dimensão <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>.<br />
Capitu representara para Bento Santiago a abertura <strong>de</strong> um <strong>de</strong>stino alternativo<br />
àquele que lhe tinha sido imposto pela promessa da mãe. Personifica o<br />
princípio do <strong>de</strong>sassossego num universo pre<strong>de</strong>terminado. A liberda<strong>de</strong> que ela<br />
representava era potencialmente subversiva e foi <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo entendida como<br />
ameaçadora pela mãe viúva <strong>de</strong> Bentinho, pelo “agregado” José Dias, e não menos<br />
pelo próprio Bentinho quando neutraliza Capitu abdicando nela a possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> escolha que ela representava e que ele anteriormente havia abdicado<br />
na mãe. Transferiu assim o <strong>de</strong>stino pre<strong>de</strong>terminado pela mãe para a esposa<br />
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