José Mauro de Vasconcelos - Meu pé de laranja-lima (pdf)(rev)
José Mauro de Vasconcelos - Meu pé de laranja-lima (pdf)(rev)
José Mauro de Vasconcelos - Meu pé de laranja-lima (pdf)(rev)
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
saber o que fazer. Precisei sentar-me na cama. E <strong>de</strong> lá espiava os sapatinhos tênis<br />
no mesmo canto, vazio <strong>de</strong> tudo. Vazio como o meu coração que flutuava sem<br />
governo.<br />
— Por que fui fazer isso, meu Deus? Logo hoje. Porque eu tinha <strong>de</strong> ser mais<br />
malvado ainda quando tudo já estava tão triste. Com que cara eu vou olhar para ele<br />
na hora do almoço? Nem a salada <strong>de</strong> frutas vai conseguir <strong>de</strong>scer.<br />
E os olhos gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>le, como tela <strong>de</strong> cinema, estavam grudados me<br />
olhando. Fechava os olhos e enxergava os olhos gran<strong>de</strong>s, gran<strong>de</strong>s...<br />
Bati com o calcanhar na minha caixa <strong>de</strong> sapato e tive uma idéia. Talvez<br />
assim Papai me perdoasse toda a malda<strong>de</strong>.<br />
Abri a caixa <strong>de</strong> Totóca e apanhei emprestada mais uma lata <strong>de</strong> graxa preta<br />
porque a minha estava no fim. Não falei com ninguém. Saí caminhando triste pela<br />
rua sem sentir o peso da caixinha. Parecia que eu estava caminhando sobre os olhos<br />
<strong>de</strong>le. Doendo <strong>de</strong>ntro dos olhos <strong>de</strong>le.<br />
Era muito cedo e todo mundo <strong>de</strong>via estar dormindo por causa da Missa e da<br />
Ceia. A rua estava cheia <strong>de</strong> crianças exibindo e comparando os brinquedos. Aquilo<br />
me abateu mais. Todos eram meninos bons. Nenhuma daquelas crianças nunca<br />
faria o que eu fiz.<br />
Parei perto do “Miséria e Fome” esperando encontrar um freguês. O<br />
botequim estava aberto até nesse dia. Não era à toa que tinham posto aquele apelido<br />
nele. Vinha gente <strong>de</strong> pijama, <strong>de</strong> chinelos, <strong>de</strong> tamanco, mas sapato mesmo nenhum.<br />
Não tomara nem café e não sentia nenhuma fome. Minha dor era muito<br />
maior que qualquer fome. An<strong>de</strong>i até à Rua do Progresso. Ro<strong>de</strong>i o Mercado. Sentei<br />
na calçada da padaria <strong>de</strong> seu Rozemberg e nada.<br />
As horas foram se ligando às horas e eu não conseguia nada. Mas tinha que<br />
conseguir. Tinha.<br />
O calor aumentou e a correia da caixa doía no meu ombro, sendo preciso<br />
trocar a caixa <strong>de</strong> posição. Senti se<strong>de</strong> e fui beber na biquinha do Mercado.<br />
Sentei no <strong>de</strong>grau da porta da Escola Pública que b<strong>rev</strong>e <strong>de</strong>veria me receber.<br />
Botei a caixa no chão e <strong>de</strong>sanimei. Encostei a cabeça nos joelhos como um boneco<br />
e fiquei sem vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> nada. Depois escondi o rosto entre os joelhos, cobrindo-o<br />
com os braços. Era melhor morrer do que voltar para casa sem o que pretendia.<br />
Um <strong>pé</strong> bateu na minha caixa e uma voz conhecida e amiga me chamou.<br />
— Eh seu engraxate, quem dorme não ganha dinheiro. Suspendi o rosto sem<br />
acreditar. Era seu Coquinho, o porteiro do Cassino. Colocou um <strong>pé</strong> e eu primeiro<br />
passei o pano. Depois molhei o sapato e enxuguei. Depois é que comecei a passar a<br />
graxa com cuidado.<br />
— O senhor po<strong>de</strong>, por favor, levantar um pouco a calça.<br />
Ele obe<strong>de</strong>ceu ao pedido.<br />
— Engraxando hoje, Zezé?<br />
31