21.06.2013 Views

José Mauro de Vasconcelos - Meu pé de laranja-lima (pdf)(rev)

José Mauro de Vasconcelos - Meu pé de laranja-lima (pdf)(rev)

José Mauro de Vasconcelos - Meu pé de laranja-lima (pdf)(rev)

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

itmo <strong>de</strong> vida. Passava os dias sentado com o meu irmãozinho junto <strong>de</strong> Minguinho,<br />

sem vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> conversar. Com medo <strong>de</strong> tudo. Papai tinha me jurado que me<br />

moeria <strong>de</strong> pancada se eu repetisse outra vez o que dissera à Jandira. De modo que<br />

eu respirava até com medo. Melhor era me refugiar na pequena sombra do meu <strong>pé</strong><br />

<strong>de</strong> Laranja Lima. Ficar vendo as montanhas <strong>de</strong> figurinhas que o Portuga me dava e<br />

ensinar com paciência o rei Luís jogar bolinhas <strong>de</strong> gu<strong>de</strong>. Ele era meio sem jeito,<br />

mas um belo dia acabaria por apren<strong>de</strong>r.<br />

Entretanto minha sauda<strong>de</strong> era muito gran<strong>de</strong>. O Portuga <strong>de</strong>veria estranhar a<br />

minha ausência e se ele soubesse realmente on<strong>de</strong> eu morava, era até capaz <strong>de</strong> me<br />

vir procurar. Fazia falta ao meu ouvido, à ternura do meu ouvido aquele jeito <strong>de</strong><br />

falar meio carregado e cheio <strong>de</strong> “tu”. D. Cecília Paim me dissera que a gente para<br />

tratar os outros <strong>de</strong> tu, precisava saber muita gramática. Estava fazendo falta<br />

também à sauda<strong>de</strong> dos meus olhos, o seu rosto moreno, a sua roupa escura sempre<br />

impecável, a gola da camisa sempre durinha como se houvesse saído da gaveta<br />

naquele momento, o seu colete <strong>de</strong> xadrezinho, até as suas abotoaduras douradas em<br />

formato <strong>de</strong> âncora.<br />

Mas logo, logo, estaria bom. Ferimento <strong>de</strong> criança cicatrizava logo muito<br />

antes do que aquela frase que costumavam citar: quando casar, sara.<br />

Naquela noite Papai não saíra. Ninguém se encontrava em casa, salvo Luís<br />

que já dormia. Mamãe <strong>de</strong>veria estar chegando da cida<strong>de</strong>. Tinha vezes que ela fazia<br />

serão no Moinho Inglês que a gente só a via aos domingos.<br />

Eu resolvera ficar perto <strong>de</strong> Papai, porque assim não faria arte alguma. Ele se<br />

sentara na ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> balanço e olhava perdidamente para a pare<strong>de</strong>. Seu rosto<br />

sempre com a barba por fazer. Sua camisa nem sempre muito limpa.<br />

Quer ver que não saíra para jogar Manilha com os amigos porque não tinha<br />

dinheiro. Pobre Papai, <strong>de</strong>via ser triste, saber que Mamãe trabalhava para ajudar a<br />

sustentar a casa. Lalá já entrara para a Fábrica. Devia ser duro ir procurar uma<br />

porção <strong>de</strong> empregos e voltar <strong>de</strong>sanimado sempre com aquela resposta: Precisamos<br />

<strong>de</strong> uma pessoa mais moça...<br />

Sentado da soleira da porta eu contava as lagartixinhas branquicelas na<br />

pare<strong>de</strong> e <strong>de</strong>sviava a vista para olhar Papai.<br />

Somente naquela manhã do Natal eu o vira tão triste. Precisava fazer alguma<br />

coisa por ele. E se eu cantasse? Eu po<strong>de</strong>ria cantar bem baixinho que iria, tinha<br />

certeza, melhorar o seu abandono. Passei o repertório na cabeça e me lembrei da<br />

última música que apren<strong>de</strong>ra com seu Ariovaldo. O tango; o tango era das coisas<br />

mais bonitas que eu já ouvira. Comecei baixinho:<br />

“Eu quero uma mulher bem nua<br />

Bem nua eu a quero ter...<br />

De noite no clarão da lua Eu quero<br />

88

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!