José Mauro de Vasconcelos - Meu pé de laranja-lima (pdf)(rev)
José Mauro de Vasconcelos - Meu pé de laranja-lima (pdf)(rev)
José Mauro de Vasconcelos - Meu pé de laranja-lima (pdf)(rev)
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
— Eu pedi para falar com você porque precisava muito. Eu sei que é ruim<br />
Papai com aquela ida<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> arranjar trabalho. Sei que <strong>de</strong>ve doer muito.<br />
Mamãe ter que sair <strong>de</strong> madrugada, para ajudar a pagar a casa. Mamãe trabalha nos<br />
teares do Moinho Inglês. Ela usa uma cinta porque foi suspen<strong>de</strong>r uma caixa <strong>de</strong><br />
espulas e ficou com aquela hérnia. Lalá é uma moça que até estudou muito e teve<br />
que virar operária da Fábrica... Tudo isso é coisa malvada. Mas também ele não<br />
precisava me bater tanto daquele jeito. No Natal, eu prometi que ele podia me bater<br />
o quanto quisesse, mas <strong>de</strong>ssa vez foi <strong>de</strong>mais.<br />
Ele me encarava atônito.<br />
— Senhora <strong>de</strong> Fátima! Como po<strong>de</strong> uma criança assim enten<strong>de</strong>r e sofrer com<br />
os problemas <strong>de</strong> gente gran<strong>de</strong>. Nunca vi!<br />
Engoliu um pouco da emoção.<br />
— Somos amigos, não somos? Vamos conversar <strong>de</strong> homem para homem? Se<br />
bem que me dá calafrios às vezes falar certas coisas contigo. Pois bem, eu acho que<br />
tu não <strong>de</strong>vias falar aqueles palavrões para a tua irmã. Aliás tu não <strong>de</strong>vias nunca<br />
falar palavrões, sabes?<br />
— Mas eu sou pequeno. Só assim é que eu me vingo.<br />
— Sabes o que significam?<br />
Fiz sim com a cabeça.<br />
— Então nem po<strong>de</strong>s e nem <strong>de</strong>ves.<br />
Fizemos uma pausa.<br />
— Portuga!<br />
— Hum.<br />
— Você não gosta que eu diga palavrões?<br />
— Simplesmente não.<br />
— Pois bem, se eu não morrer, eu prometo a você que não xingo mais.<br />
— Muito bem. E que negócio <strong>de</strong> morrer é esse?<br />
— Quando chegar daqui a pouco eu conto.<br />
Tornamos a nos calar e o Português estava cismado.<br />
— Preciso saber <strong>de</strong> outra coisa já que confias em mim. Aquela história da<br />
música. O tal do Tango. Tu sabias o que estavas cantando?<br />
— Eu não quero mentir para você. Eu não sabia direito. Eu aprendi porque<br />
aprendo tudo. Porque a música é muito bonita. Nem pensava no que, queria dizer ...<br />
Mas ele me bateu tanto, tanto, Portuga. Não faz mal ...<br />
Funguei compridamente.<br />
— Não faz mal, eu vou matar ele.<br />
— Que é isso menino, matares teu pai?<br />
— Vou, sim. Eu já até que comecei. Matar não quer dizer a gente pegar o<br />
<strong>rev</strong>ólver <strong>de</strong> Buck Jones e fazer bum! Não é isso. A gente mata no coração. Vai<br />
<strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> querer bem. E um dia a pessoa morreu.<br />
94