José Mauro de Vasconcelos - Meu pé de laranja-lima (pdf)(rev)
José Mauro de Vasconcelos - Meu pé de laranja-lima (pdf)(rev)
José Mauro de Vasconcelos - Meu pé de laranja-lima (pdf)(rev)
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
antes das outras coisas acontecerem. No final eu acho que ele não soube explicar<br />
direito. O que queria dizer era simplesmente tudo que vinha na frente...<br />
Então eu pegava pedaços <strong>de</strong> cordão, sobras <strong>de</strong> linha, furava um mundão <strong>de</strong><br />
tampinhas <strong>de</strong> garrafa e ia ajaezar Minguinho. Era <strong>de</strong> se ver que lindo que ele ficava.<br />
O vento dando, chocava uma tampinha contra a outra e parecia que ele estava<br />
usando as esporas <strong>de</strong> prata <strong>de</strong> Fred Thompson quando montava o seu cavalo Raio<br />
<strong>de</strong> Luar...<br />
O mundo da Escola Pública era também muito bom. Eu sabia todos os hinos<br />
nacionais <strong>de</strong> cor. O grandão que era o verda<strong>de</strong>iro, os outros hinos nacionais da<br />
Ban<strong>de</strong>ira e o hino nacional da Liberda<strong>de</strong>, Liberda<strong>de</strong>, abre as asas sobre nós. Pra<br />
mim e eu acho que pra Tom Mix também, era o que eu mais gostava. Quando a<br />
gente ia a cavalo sem guerra e sem caçada, ele me pedia com respeito:<br />
— Vamos, guerreiro Pinagé, cante o hino da Liberda<strong>de</strong>.<br />
Minha voz bastante fina enchia as planícies enormes, com muito mais beleza<br />
do que quando eu cantava com seu Ariovaldo, trabalhando <strong>de</strong> ajudante <strong>de</strong> cantor às<br />
terças-feiras.<br />
Nas terças-feiras, gazeteava a aula como <strong>de</strong> costume para esperar o trem que<br />
trazia o meu amigão Ariovaldo. Ele já vinha <strong>de</strong>scendo as escadas mostrando nas<br />
mãos os folhetos da venda nas ruas. Trazia ainda duas sacolas cheias que eram a<br />
reserva. Quase sempre ele vendia tudo e isso <strong>de</strong>ixava uma alegria muito gran<strong>de</strong><br />
para nós dois...<br />
Nos recreios, quando dava tempo, a gente jogava até bola <strong>de</strong> gu<strong>de</strong>. Eu era o<br />
que se chamava <strong>de</strong> rato. Tinha uma pontaria garantida e quase nunca <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong><br />
voltar para casa com a sacolinha sacolejando as bolas muitas vezes até triplicadas.<br />
A coisa comovente era a minha professora, D. Cecília Paim. Podiam contar a<br />
ela que eu era o menino mais endiabrado da minha rua, que ela não acreditava.<br />
Como também não acreditaria que ninguém conseguia dizer mais palavrões do que<br />
eu. Que nenhum moleque me igualava em travessuras. Isso, ela não acreditava<br />
nunca. Na Escola eu era um anjo. Nunca tivera uma repreensão e tornava-me<br />
querido das professoras por ser um dos menores garotinhos que aparecera até então.<br />
D. Cecília Paim, conhecia <strong>de</strong> longe a nossa pobreza e na hora do lanche, quando<br />
via todo mundo comendo sua merenda, ficava emocionada, me chamava sempre à<br />
parte e me mandava comprar o sonho recheado no doceiro. Ela tinha tamanha<br />
ternura por mim que eu acho que ficava bonzinho só para ela não se <strong>de</strong>cepcionar<br />
comigo.<br />
De repente a coisa aconteceu. Eu vinha <strong>de</strong>vagar, como sempre, pela estrada<br />
Rio-São Paulo quando o carrão do Português passou bem <strong>de</strong>vagarzinho por mim. A<br />
buzina soou três vezes e vi que o monstro me olhava sorrindo. Aquilo me fez<br />
renascer a raiva e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> matá-lo <strong>de</strong> novo quando ficasse gran<strong>de</strong>. Fechei a cara<br />
no meu orgulho todo e fingi ignorá-lo.<br />
68