José Mauro de Vasconcelos - Meu pé de laranja-lima (pdf)(rev)
José Mauro de Vasconcelos - Meu pé de laranja-lima (pdf)(rev)
José Mauro de Vasconcelos - Meu pé de laranja-lima (pdf)(rev)
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Soltou uma gargalhada tão gostosa que fez vento no capinzal.<br />
— Não, porque eu não sou rei e não mando nada. Eu sempre te pedirei as<br />
coisas.<br />
— Mas você podia ser rei. Você tem tudo para ser rei. Todo rei é gordo como<br />
você. O rei <strong>de</strong> copas, o <strong>de</strong> espadas, o <strong>de</strong> paus e o <strong>de</strong> ouros. Todos os reis do baralho<br />
são bonitos como você, Portuga.<br />
— Vamos. Vamos com o trabalho, senão com essa conversa comprida não se<br />
pesca nada.<br />
Ele apanhou uma vara <strong>de</strong> pesca, uma lata on<strong>de</strong> tinha uma porção <strong>de</strong><br />
minhocas, <strong>de</strong>scalçou os sapatos e tirou o colete. Sem colete ele ficava ainda mais<br />
gordo. Apontou o rio.<br />
— Até ali tu po<strong>de</strong>s brincar. É raso. Para o outro lado não, que é muito fundo.<br />
Agora eu vou ficar ali pescando. Se quiseres ficar comigo, não po<strong>de</strong>s falar. Senão<br />
os peixes fogem.<br />
Deixei ele sentado lá e fui reinar. Descobrir coisas. Como era lindo aquele<br />
pedaço <strong>de</strong> rio. Molhei os <strong>pé</strong>s e vi um mundo <strong>de</strong> sapinhos pra lá e pra cá na<br />
correnteza. Fiquei vendo a areia, os seixos e as folhas sendo puxados pela<br />
correnteza. Me lembrei <strong>de</strong> Glória.<br />
“Deixa-me fonte, dizia A flor a chorar Eu fui nascida no monte Não me leves<br />
para o mar. Ai balanços dos meus galhos Balanço dos galhos meus Ai claras gotas<br />
<strong>de</strong> orvalho Caídas do azul do céu... E a fonte sonora e fria Com um sussurro<br />
zombador Por sobre a areia corria levando a flor...”<br />
Glória tinha razão. Aquilo era a coisa mais bonita do mundo.<br />
Pena que eu não pu<strong>de</strong>sse contar pra ela que vira a poesia viver. Não era com<br />
flor, mas com uma porção <strong>de</strong> folhazinhas que caíam das árvores e iam embora para<br />
o mar. Será que o rio, esse rio vai também pro mar? Podia perguntar ao Portuga.<br />
Não, ia atrapalhar a sua pescaria.<br />
Mas a pescaria resultou apenas em dois lambaris que até davam dó <strong>de</strong> terem<br />
sido pescados.<br />
O sol estava bem alto, <strong>Meu</strong> rosto se achava afogueado <strong>de</strong> tanto que eu<br />
brincava e conversava com a vida. Foi quando o Portuga veio <strong>de</strong> lá e me chamou.<br />
Vim correndo como um cabritinho.<br />
— Mas que sujo tu estás, Pirralho.<br />
— Brinquei <strong>de</strong> tudo. Me <strong>de</strong>itei no chão. Buli com água...<br />
— Vamos comer. Mas tu não po<strong>de</strong>s comer assim sujinho como se fosses um<br />
porquinho. Vamos, <strong>de</strong>spe-te e mergulha ali naquele lugar raso.<br />
Mas eu fiquei in<strong>de</strong>ciso sem querer obe<strong>de</strong>cer.<br />
— Eu não sei nadar.<br />
— Mas não é preciso. Vamos, eu fico perto.<br />
Continuava parado. Não queria que ele visse...<br />
99