José Mauro de Vasconcelos - Meu pé de laranja-lima (pdf)(rev)
José Mauro de Vasconcelos - Meu pé de laranja-lima (pdf)(rev)
José Mauro de Vasconcelos - Meu pé de laranja-lima (pdf)(rev)
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Ainda tonto <strong>de</strong> dor fui arrancando a lasca da garrafa. Gemia baixinho e via o<br />
sangue se misturando com a água suja do valão. E agora? Consegui com os olhos<br />
cheios d'água retirar o vidro, mas nem sabia como estancar o sangue. Apertava com<br />
força o tornozelo para diminuir a dor. Tinha que agüentar firme. Estava perto <strong>de</strong><br />
chegar a noite e com ela, viriam Papai, Mamãe e Lalá. Qualquer um que me<br />
pegasse me batia.<br />
Podia até que cada um me pegasse em três surras divididas.<br />
Subi <strong>de</strong>sorientado a barreira e fui me sentar pulando num <strong>pé</strong> só <strong>de</strong>baixo do<br />
meu <strong>pé</strong> <strong>de</strong> Laranja Lima. Ainda doía muito mas já passara a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> vomitar.<br />
— Espia, Minguinho. Minguinho ficou horrorizado. Era como eu, não<br />
gostava <strong>de</strong> ver sangue.<br />
— Que fazer, meu Deus? Totóca bem que me ajudaria, mas on<strong>de</strong> andaria ele<br />
há essas horas? Tinha Glória. Glória <strong>de</strong>veria estar na cozinha. Era a única que não<br />
gostava que me batessem tanto. Podia ser que ela me puxasse as orelhas ou me<br />
pusesse <strong>de</strong> castigo <strong>de</strong> novo. Mas tinha que tentar.<br />
Arrastei-me até a porta da cozinha, estudando um meio <strong>de</strong> <strong>de</strong>sarmar Glória.<br />
Ela estava bordando uns panos. Sentei meio sem jeito e <strong>de</strong>ssa vez Deus me ajudou.<br />
Ela me olhou e viu que eu estava <strong>de</strong> cabeça baixa. Resolveu não dizer nada porque<br />
eu estava <strong>de</strong> castigo. Fiquei com os olhos cheios d'água e funguei. Dei com os<br />
olhos <strong>de</strong> Glória me fitando. Suas mãos tinham parado no bordado.<br />
— Que é, Zezé?<br />
— Nada, Godóia... Por que ninguém gosta <strong>de</strong> mim?<br />
— Você é muito arteiro.<br />
— Hoje já levei três surras, Godóia.<br />
— E não mereceu?<br />
— Não é isso. É que como ninguém gosta <strong>de</strong> mim, aproveitam para me bater<br />
por qualquer coisa.<br />
Glória começou a comover seu coração <strong>de</strong> quinze anos. E eu sentia isso.<br />
— Eu acho que é melhor amanhã eu ser atropelado na Rio–São Paulo e ficar<br />
todo esmagadinho.<br />
Aí então as lágrimas <strong>de</strong>sceram em torrentes dos meus olhos.<br />
— Não diga bobagens, Zezé. Eu gosto muito <strong>de</strong> você.<br />
— Não gosta, não. Se gostasse não ia <strong>de</strong>ixar eu apanhar mais uma surra hoje.<br />
— Já está escurecendo e nem vai mais ter tempo <strong>de</strong> você fazer alguma<br />
travessura para apanhar.<br />
— Mas eu já fiz...<br />
Ela soltou o bordado e se aproximou <strong>de</strong> mim. Quase soltou um grito ao ver a<br />
poça <strong>de</strong> sangue que envolvia o meu <strong>pé</strong>.<br />
— <strong>Meu</strong> Deus! Gum, o que foi isso?<br />
Estava ganha a partida. Se ela me chamava <strong>de</strong> Gum era porque estava salvo.<br />
70